domingo, 30 de setembro de 2012

UM CROCODILO NA CAMISOLA

UM CROCODILO NA CAMISOLA

...uma noite no Porto, estava eu nos GNR, e fui ao Griffon´s, na Brasília; cheguei lá e estava uma palmeira na entrada; ia a entrar e o porteiro diz-me: "Não pode entrar assim vestido, pois hoje é noite "Safari"; e eu vejo outros a entrarem com chapéus de colonizadores, e camisas havaianas; eu, olhei para mim, para a minha roupa, e reparo que tenho vestido uma camisola da Lacoste; viro-me para o porteiro e digo-lhe: "Mas eu tenho um crocodilo na minha camisola!"; ele olhou para mim, riu-se, e deixou-me entrar...

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O FILHO DO ROCK PORTUGUÊS

O FILHO DO ROCK PORTUGUÊS

...uma vez estava a gravar com os GNR em Paço de Arcos, e estavam lá o Rui Veloso e dois músicos dos Trovante; estava também o fotógrafo Luís Vasconcelos, que decidiu tirar-nos uma foto a todos; no momento em que ele ia tirar a foto, saltei para cima do Rui, que teve de segurar em mim nos seus braços, e assim ficou a foto: eu ao colo do Rui; a legenda da foto era: "Se o Rui Veloso é o Pai do Rock Português, Vítor Rua é o Filho do Rock Português"...

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

CÁSIO DE 5 CONTOS

CÁSIO DE 5 CONTOS


...uma vez os Telectu foram convidados para irem tocar à Bienal de Cerveira; em vez dos usuais 200 contos para cada um de nós, a Bienal só pagava 200 contos para os dois; aceitamos na mesma, porque éramos amigos do pintor e organizador da Bienal, Jaime Isidoro; no dia que partíamos, o Jorge disse que não levava o sintetizador, que era muito pesado e grande e que, como eles pagavam pouco, não o levava; e eu perguntei-lhe: "E que vais então tu tocar?"; e ele: "Depois logo se vê"; chegamos a Cerveira no dia anterior ao concerto e o Jorge quis ir à Vila; chegados lá, numa loja de brinquedos, viu na montra um sintetizador de brincar da Cásio, que custava 5 contos; era daqueles que, de tão pequenino ser, tinha-se de tocar nas teclas com os dedos mindinhos; comprou-o, e tocou num Cásio...

PORTAS & MAOMÉ

PORTAS & MAOMÉ

...ia eu no Metro, quando escutei este diálogo entre dois homens: A: "Eu vou mas é fazer um vídeo, com o Portas a ir ao cu ao Maomé"; B: "Para quê?"; A: "Então não vês o que eles estão a fazer por todo o mundo nas embaixadas americanas?... Ora, se vierem a saber, da existência de um vídeo, em que até a Catherine Deneuve, vai ao cu ao Maomé, pode ser que os gajos metam uma bomba na nossa Assembleia"...

terça-feira, 25 de setembro de 2012

NEAR SILENCE

NEAR SILENCE


Desde sempre os compositores se importaram com o silêncio na música. Bach criava vazios nas suas diferentes vozes da mesma forma que Boulez na sua obra Répons usou um sistema composicional onde abria “buracos” substituindo notas por pausas; Morton Feldman foi mais longe, retirando mesmo na sua totalidade as notas e ficando só com os sinais de pausas nalgumas das suas obras para piano solo. Repare-se que quando falo destes vazios ou buracos, é diferente de estar a falar de nada. Estes compositores procedem assim com um propósito musical.
Desde os futuristas no início do século XX, que o ruído começou cada vez mais a interessar os compositores e os músicos. Inicialmente na música erudita e posteriormente no jazz (free jazz), nas músicas improvisada e experimental e no rock (noise music). Da mesma forma o silêncio que até John Cage era apenas mais uma ferramenta composicional, passa a ser peça fundamental e por vezes única, de uma nova maneira de compôr e de tocar música.
Veja-se a análise do musicólogo David Metzer sobre o silêncio na Música: “Silence has frequently been upheld as a terminus, be it the climax of artistic nullity or the void created by the inevitable cultural withdrawal of modern art. The idea of silence as a point of departure has rarely been proposed, yet modernist music shows that silence has played such a role. Silence is a state, a sonic or conceptual ideal to which a work aspires. Silence is one such ideal, as are purity, complexity, and the fragmentary. Modernist, especially late modernist, composers have written works that aim to evoke states through musical languages that emulate distinct qualities of those conditions. Webern, Nono, and Sciarrino are three composers who have turned to silence. Instead of parsing out sections of silence (as Cage did), they create musical settings that conjure aspects of quiet. All three situate their music in a particular scene, the border between sound and silence. Informed by stillness, fragmentation, and fragility, it is a space that appears often in modernist arts, particularly the writings of Beckett. Far from being a narrow and doomed location, it is a limitless realm, a new sonic territory. The borderland, like many states, has unique potential for expression. Silence has long been used expressively, as experienced in tense pauses, but Webern, Nono, and Sciarrino use silence to comment on expression as an act. They ask questions about the act: How does it start? How is an utterance conveyed? What happens to it? Silence provides a revealing backdrop against which to scrutinize expression. This commentary is part of an ongoing modernist interrogation of expression. The music of Webern, Nono, and Sciarrino adds to the interrogation, doing so through a modernist point of fascination with silence”. Salwa Castelo-Branco - etnomusicóloga - refere que na leitura do alcorão, o silêncio está meticulosamente delineado; tanto ou mais que a parte escrita. Deu-me como exemplo, a leitura de Al-Sheikh Abdel Basit Abdel Samad, que pude visionar um excerto no youtube.
Irei agora de seguida – ainda que de uma forma sintetizada – escrever sobre uma nova tipologia musical intitulada de near silence (perto do silêncio). Estes músicos lidam normalmente com sons no limiar do audível e recorrem a técnicas instrumentais de forma a obterem um mínimo de som produzido e assim, lidarem apenas com resíduos ou sons parasitários, de forma a criarem texturas, melodias, harmonias ou ritmos subliminais e que exigem um novo tipo de escuta. Estando muito próximos de uma estética minimal, estes músicos procuram e usam o silêncio como fonte principal do seu trabalho e escutar as suas obras obrigam-nos a uma nova forma de escutar essa mesma música. Ao contrário da noise music onde massas sonoras atingem por vezes o limite suportável da nossa audição, o near silence obriga-nos a ouvir o subliminal e a apercebermo-nos das suas infímas variações tímbricas e dinâmicas. Tentar encontrar uma razão ou um significado para que certos compositores se dediquem ou ao silêncio ou ao ruído, faz-me recordar uma citação do compositor John Cage “E eu não sou tão tolo também! Houve um filósofo alemão muito conhecido, chamado Emmanuel Kant. Ele disse que existem duas coisas que não precisam significar nada: uma é a música, e a outra é o riso! Essas duas coisas não devem significar nada, no sentido de que nos dão um prazer muito profundo”.
Chris Cutler pensa que o near silence is a music you are not sure you are hearing. Or, in the classes I gave in boston, I suggested that music with very high redundancy - like drones or a simple continual repetitions had an affinity with - perhaps could be said to be, psychologically, though not physically, close to - silence... informationally they are I think... eno's airport music played very quietly would in this sense be both dynamically and psychologically close to silence i suppose. Cutler refere-se aqui à “música ambiental” ou “muzak”.
Eddie Prevóst considera que existem considerações técnicas para o uso do silêncio numa obra, tal como existe para o som: “The use of this material (i.e silence) requires exactly the same sensibility as does making sounds. However, it is its inaudibility that makes it difficult to know, with certainty, that silence is the intended objective. It also requires a close attention to the ensuing musical development and a great deal of empathy for a group of people to negotiate silence collectively. It requires close attention to the moment for both musicians and the audience. Both have to follow the trajectory of silence from the first faltering moments of inactivity into a purposeful focus upon the absence of sound. During a performance the musicians may not know that a silence is to ensue. It is this focus upon the moment that ensures the veracity of the silence. Doubt about its presence gives it meaning. Finally, like an exhalation the silence is relinquished. It fades just as the sounds have faded before it. We let all the sounds that have been used for the performance back into a place from which they have come. From an adaptive perspective we are applying silence to a musical setting. This is not the same as making spaces between sounds. Listening to silence is not the same as hearing nothing. We might — in our normal physical state and going about our daily lives — claim of a situation that nothing can be heard. This will probably mean that nothing is being heard that is germane to our current state of consciousness. However, if we simply stopped the normal chatter and focused upon the acoustic environment, we would probably begin to detect sounds of which we had hitherto been unaware. We might, equally, become conscious of the extreme absence of normal sounds”.
Para saber da existência ou não da existência de uma comunidade em Portugal de músicos a praticarem este estilo musical, resolvi entrevistar por e-mail, dois músicos improvisadores, residentes em Portugal e ir assistir a dois concertos destes músicos. O primeiro concerto que assisti - Carlos Zíngaro (violino), Pedro Carneiro (vibrafone) e Carlos santos (laptop) teve partes de near silence e o concerto foi regido (nesses momentos de near silence) pelas técnicas da “threshold music”. Já o concerto dirigido por Ernesto rodrigues, foi um bom exemplo de near silence. Houve uma gestão inteligente do silêncio e todo o evento transmitia ao ouvinte, uma sensação de plenitude e relax. Ernesto Rodrigues (violino, viola, objectos, metrónomo) era um condutor das texturas subliminais que emergiam ao som circundante do palco (o concerto realizou-se na LX Factory e por vezes ouvia-se o som das pessoas que preferiram estar no café a assistir ao concerto); Guilherme Rodrigues (violoncelo, metrónomo) e Nuno Torres (saxofone alto, metronomo), intervinham muito espaçadamente e usando advanced thecnics no uso dos seus instrumentos. Gil Gonçalves (tuba, metrónomo) usava o espectro sonoro dos harmónicos e formants, para criar um som quase “fantasmagórico”. Abdul Moimeme (guitarra eléctrica, metrónomos) tocava em duas guitarras expostas paralelamente uma à outra e com uma tira de metal (usando-a como um arco de violino) conseguia obter som simultâneo de ambos os instrumentos. José Oliveira (percussão, metrónomo) usou inicialmente o piano como instrumento de percussão (usando baquetas diversas), para posteriormente ir para um kit incompleto de bateria. carlos Santos usou durante todo o concerto, o laptop de forma quase inaudível, criando texturas abstractas imperceptíveis. Por vezes - tal era o silêncio que pairava no palco - ouvia-se mais os sons provindos do café do andar de baixo, do que as paisagens sonoras que provinham dos músicos. Este espectáculo foi integralmente gravado directamente para um computador Mac, usando o software pro tools e as entrevistas realizadas por e-mail.

Sobre o que é o near silence o improvisador Carlos Zíngaro diz o seguinte: “Independentemente de serem interpretações inevitavelmente subjectivas, a denominada abordagem do "near silence" terá a ver com o controle de cada músico, individualmente ou em grupo, no rigoroso exercício de auto-impostos limites na interpretação de patamares auditivos tendentes ao redobrado esforço de concentração por parte do ouvinte. Onde se contrariam execuções expressionísticas e onde o som vale por si, sem eventuais artifícios gestuais. Será uma prática que se poderá entender como bastante mais derivada de conceitos composicionais do que a normalmente conseguida com a chamada "livre improvisação", onde essencialmente o momento será aleatoriamente determinado pelas decisões ou "acasos" de cada participante”. Para o improvisador Ernesto Rodrigues - introdutor desta tipologia em Portugal - o near silence é “a resposta mais objectiva e contundente ao mundo desordenado, caótico e ruídoso em que vivemos. Digamos que faz o contraponto com a rudeza da realidade dos nossos dias. O estilo pode ser caracterizado pela percepção do silêncio ou seja, a consciencialização do mesmo, que se traduz também na economia dos sons – reducionismo”. 
Questionei estes dois improvisadores, sobre quais eram as técnicas e idiossincrasias desta música. Ernesto Rodrigues diz que:“embora se utilizem menos notas (e notas são todo e qualquer som), por outro lado os instrumentos são explorados integralmente, o que se traduz numa panóplia sonora muito mais rica e vasta. Logo, pode-se afirmar que sonicamente os instrumentos são cirurgicamente analisados o que se traduz nas chamadas “extended technics”. A tudo isto é necessário acrescentar um doseamento equilibrado entre som/ruído e silêncio”. Já Carlos Zíngaro diz que: “Próxima dos conceitos "minimalistas", foi a "threshold music" uma derivação das práticas "improvisacionais" da época, muito baseada nos conceitos de John Cage e do "deep listening", e tendente a contrariar (ou enquanto alternativa) a "estética do grito" então prevalecente (anos '70 do século passado) e fequentemente oriunda das abordagens "free jazz". Evidente que o denominado "near silence" lhe é referente sendo que, ainda em opinião exclusivamente pessoal (embora partilhada por muitos), a maioria das situações com que tenho sido recentemente confrontado (essencialmente enquanto ouvinte / espectador), me deixam pleno de questões, dúvidas e frequentes frustrações... Nos eventos de "threshold music" haveria um evidente fruir do espaço sonoro, na preocupação em uma "musicalidade" outra, na descoberta de interacções possíveis, mesmo no não som instrumental. Hoje, salvo raras excepções, serei confrontado essencialmente com o tolher desse fruir e/ou dessa musicalidade, tantas vezes em "poses conceptuais" que considero alheias à construção sonoro/musical. Acrescento apenas que, tantas vezes confrontado com a ostensiva não escuta e egotismo galopante por parte de alguns companheiros eventuais, me remete frequentemente a um "near silence" esperançoso de melhores momentos de ensemble, onde a intransigente e tantas vezes gratuita verbosidade se acalme e dê lugar a partilhas mais consequentes”. 
Quis saber de seguida se em Portugal se podia falar da existência de uma comunidade de músicos praticando este estilo musical. Perguntei a Ernesto Rodrigues se ele se considerava de algum modo o pioneiro desta linguagem por cá, e ele respondeu-me assim: “De facto antes de mim, não tenho notícia de que alguém o tenha feito (em Portugal). Mesmo a nível internacional penso que o meu cd “Self Eater and Drinker” (projecto iniciado em 1997), aponta já para muitas das soluções que coetaneamente podíamos observar nas práticas mais representativas desta estética, tais como as escolas de Viena, Londres, Tokio, Berlim, Boston, etc. Nos ultimos 10 anos, tenho tido a preocupação de veicular estas ideias a alguns músicos de Lisboa que penso poderem desempenhar esta funçao com “agilidade” e competência. Fundei o grupo SUSPENSÃO que integra 8 elementos e que está direccionado exclusivamente para esta corrente estética”.
A Carlos Zíngaro perguntei-lhe quem eram os nomes referência da cena internacional do near silence. Ele respondeu: “Evidentemente que, desde um John Cage a um Luigi Nono, passando pelo incontornável Richard Teitelbaum - pontualmente com o seu histórico grupo Musica Electronica Viva - por Pauline Oliveros, até às actuais fascinantes práticas do grupo Francês HUBUB ou do Inglês Rhodri Davies, entre alguns outros”.
Pode-se dizer que afinal o near silence não é um novo estilo musical, mas sim uma evolução lógica de trabalhos realizados por músicos anteriores? Cutler diz: “I don't think that's really a new kind of music, it seems rather like an art experiment to me and it seemed to come and go quite quickly - I'm not sure who is doing it now... sibelius uses a lot of silence and near silence ...webern ... feldman ... then there's schnittke's amazing pianissimo for large orchestra.. and in many classical and contemporary and some improvised musics there near silences that one is carried into - in a kind of suspension of time... as AMM also do”. Cutler vê uma “evolução” e não uma “revolução” ou “inovação” neste estilo musical.
Eu acredito que existe, na realidade, toda uma comunidade de músicos de diversas áreas e de diferentes povos, a fazerem near silence e que este é um estilo musical com características próprias. A forma como usam o silêncio e como o abordam, é uma idiossincrasia desta música. Em Portugal, curiosamente, só encontramos vestígios de músicos a praticarem esta música em Lisboa, o que não terá sido alheio o facto de Ernesto Rodrigues ou Carlos Zíngaro, residirem em Lisboa e um deles - Ernesto Rodrigues - dirigir uma editora de discos, onde publica obras deste género musical e o outro - Carlos Zíngaro - ser um dos músicos mais requisitados para actuar no estrangeiro com nomes cimeiros da música improvisada.
Para finalizar este meu ensaio, deixava aqui o testemunho de um pioneiro do uso do silêncio, o improvisador Eddie Prevóst: “Treating, and meditating upon, silence within a concert situation is a conscious application of attention upon a perceptual dimension that has previously been the domain of mystical contemplation. However, it is an attribute available to all human beings. Silence within the realm of music becomes, paradoxically, more precious in proportion to the musicians’ ability to demystify the experience. For It is within this newly configured cognitive musical space that a person senses their own existence. Absence of sound acquires a magnitude. Silence achieves a presence. Sounds evaporate into an ethereal cloud of nothingness. Death”.

MELHOR PORQUÊ? (Parte 1)

MELHOR PORQUÊ? (Parte 1)


(Conversa entre dois etnomusicólogos: o aluno e o professor)

Aluno – Há uma coisa que não percebo muito bem nisto da etnomusicologia…
Professor – E essa coisa é o quê?
Aluno – Tem a ver com o conceito de “qualidade”. Não entendo o prurído que os etnomusicólogos têm em dizer que uma coisa é “melhor” que outra. Porquê?
Professor – Tu gostas mais de tomate ou de cenoura?
Aluno – Eu? De tomate, porquê?
Professor – É que eu gosto mais de cenoura. Ou seja: eu prefiro cenoura e tu preferes tomate. Agora pergunto: Qual é melhor? O tomate ou a cenoura?
Aluno – Para ti é a cenoura e para mim é o tomate.
Professor – Mas e para as outras pessoas? As que gostam de pepino? As que gostam de cebola? Qual é o melhor afinal?
Aluno – Cada pessoa pode gostar de um vegetal diferente, mas todos acham que o que eles gostam é melhor que o dos outros.
Professor – Não, o que as pessoas acham é que embora elas gostem de determinado vegetal, existem outras pessoas com gostos diferentes. Mas, um vegetal não é melhor que o outro só porque é o nosso preferido.
Aluno – Talvez o exemplo com alimentos não seja o mais indicado para este caso. Vamos para o campo musical. Por exemplo: Não podemos afirmar que Helmutt Lachenmann é melhor que Julio Iglésias?
Professor – Melhor em quê?
Aluno – Melhor músico.
Professor – Mas penso que não se pode comparar um com o outro: um é compositor e pianista e outro é intérprete e cantor… Já para não falar na diferença de tipologia musical entre ambos.
Aluno – Mas, mesmo tendo em conta essas diferenças todas, podemos afirmar que um é mais importante que outro, ou não? Um cria e inventa novos conceitos em música; desenvolve novas notações musicias; novos timbres. Enquanto o outro limita-se a usar de forma naíf e kitsh, o que já há muito foi inventado e usado de forma mais inteligente, pela música erudita.
Professor – Não tens sede? Eu bebia algo fresco. Uma limonada talvez?
Aluno – Eu vou preparar Professor.
(Retira-se e volta mais tarde com o refresco)
Professor – Hum… Que boa está esta limonada. É a melhor limonada que eu já bebi na vida.
Aluno – Vê? O Professor acabou de usar a palavra “melhor”! Disse que era a melhor limonada que já bebeu…
Professor – E é! Até agora só tinha bebido limonada artificial com gás. Esta é a primeira que bebo natural, espremida do limão.
Aluno – Mas Professor: eu gosto muito mais de limonada com gás! Para mim a limonada com gás é muito melhor que a natural.
Professor – Então tu gostas mais de limonada artificial e eu gosto mais da natural.
Aluno – Mas Professor: se o Professor diz que esta é a “melhor” limonada que já bebeu, porque não pode dizer que determinada música é a “melhor” que já ouviu?
Professor – “Melhor” em que sentido? As músicas são tão diferentes! Ouvir um tema de jazz, é diferente de ouvir uma ária de ópera ou uma polifonia dos pigmeus Aka. Não acho que umas sejam melhores do que outras, apenas diferentes.
Aluno – Mas Professor, e dentro de um estilo musical? Por exemplo o jazz. Não se pode dizer que um Thelonious Monk é melhor pianista do que o Teté Montoliou?
Professor – Melhor em quê? E para quem? Eu gosto muito do Monk, mas também me interessam certas composições do Teté.
Aluno – Mas o Monk é mais autêntico que o Teté.
Professor – Para ti isso é uma realidade, mas pode não o ser para outro. E o que é ser “mais autêntico”? Não é um pouco subjectivo isso?
Aluno – Pois… para os etnomusicólogos tudo é “subjectivo”… parece não haver nada “objectivo”. Não têm opinião sobre nada. Tudo é “bom” dependendo do “ponto de vista”. E têm muitas “dúvidas”. Sempre muitas dúvidas. 
Professor – E não achas que é melhor ter dúvidas, do que certezas absolutas?
Aluno – Como os musicólogos históricos?
Professor – Como “alguns” musicólogos históricos…
Aluno – Diga-me Professor: não há nada em música que ache melhor que outra?
Professor – Tantas.
Aluno – Mas depois não escreve isso. Porquê?
Professor – Que interesse pode haver, para as pessoas saberem o que eu acho melhor ou pior?
Aluno – As pesoas que o respeitam e que admiram as suas ideias, ao saberem dos seus gostos, podem sempre comparar com os delas e, se for caso disso e assim o entenderem, de livre vontade, mudarem as suas ideias. Seria até pedagógico…
Professor – Mas eu posso alertar as pessoas para aquilo que gosto, sem ter de dizer que, as minhas músicas são melhores que outras que elas ouvem.
Aluno – Mas que mal tem em mostrar o seu gosto?
Professor – E que mal tem em não o mostrar?
Aluno – Não sei… parece-me um pouco como certa dança contemporânea que, tendo achado que foi escravizada pela música durante quase toda a sua existência, resolve agora não usar música nas suas coreografias.
Professor – E em que é que isso term a ver com o gosto?
Aluno – Tem porque eu penso que os etnomusicólogos, ao se oporem às vacas sagradas e às certezas absolutas de certa musicologia, tornaram-se no seu absolutamente oposto, criando uma negação do gosto pessoal e a ausência de adjectivos caracterizadores de qualidade.
Professor – E supondo que tens razão, vês isso como algo de “negativo”?
Aluno – Negativo não… mas mete-me impressão. Mas repare Professor: eu – como etnomusicólogo – respeito toda a música. Para mim o penúltimo quarteto de cordas de Beethoven não é “melhor” do que um raga indiano. Um cantor do Burundi não é melhor que um cantor de rock. A música clássica não é melhor que a música jazz. Isso eu sei e respeito. Mas dentro de cada área, existem – quanto a mim – “estratos de qualidade” chamemos-lhe assim. De forma a percebermos e podermos até explicar porquê, a razão de por exemplo, a canção Knock knock knock on the heva´sn door do Bob Dylan, é melhor que a cover de uma banda portuguesa (que não me recordo agora o nome). Deviamos poder dizer, assim, que uma canção – ao ser a original – já tem em si um valor de “autenticidade” que não existe na outra. Mas mesmo noutros pontos – instrumentação, tímbres, ritmo, harmonia, bruítage – deviamos ter ferramentas de análise que nos permita mostrar, claramente, que algo é “melhor”, porque mais “original” e “autêntico”.
Professor – Mas não podemos usar essas “ferramentas” para “descrever” o que ouvimos e vemos, sem termos de “comparar”?
Aluno – Claro que sim. Mas eu refiro-me a casos concretos em que logo de início temos de tomar decisões como “Vou fazer um trabalho sobre Rap em Lisboa” por exemplo. Ora, quando o etnomusicólogo resolve escolher este tema, antes de se atirar a analisar o primeiro grupo que apanhe na esquina do seu bairro (aí o trabalho já poderia ser “Grupos Rap de Bairro) fazer uma pesquisa, para que a sua escolha possa ir no sentido de serem incluídos no seu trabalho, grupos representativos dessa tipologia musical, quer pela “autenticidade”, “identidade”, “originalidade”, quer pelo que representam na sociedade em que estão inseridos. Talvez aí, mude certa “moda”, de se falar de seja sobre o que for, aparentemente sem um critério de gosto.
Professor – E como procedia o etnomusicólogo para escolher esses “grupos representativos”? Pelo número de discos editados? É que ter discos editados não significa propriamente sinal de qualidade. É pelo número de concertos dados? É que nem sempre são os melhores músicos a darem mais concertos… pelo contrário. Que critério usaria o etnomusicólogo?
Aluno – Partimos do príncipio que o etnomusicólogo é uma pessoa sensível à música e com um conhecimento aprofundado desta. Logo aí, joga a “intuição” dele: uma escolha baseado no que está a ver e ouvir. Por vezes logo através de uma capa de um disco, aprecebemo-nos de muitas coisas. A estética da capa; a forma como os músicos estão vestidos; as poses ou ausência de poses; a informação sobre o disco, enfim, um sem número de coisas que nos fazem logo ver que tipo de material estamos a lidar. E se não for o caso, começar a usar pesquisa de campo: na net, ou através de pessoas (músicos, musicólogos, melómanos) que achemos nos possam dar alguma indicação pertinente. Creio que seria mais ou menos assim que teria de proceder o etnomusicólogo: com intuíção e lógica.
Professor - Mas percebes, que mesmo assim, mesmo supondo que esse etnomusicólogo fez “a melhor escolha”, irá sempre haver alguém, que acha que faria uma “melhor” escolha que a dele?
Aluno – Mas pelo menos existe a vontade de tentar mostrar o mais representativo e não, ficarmos pelo n´importe quoi, tipo: logo que a nossa argumentação seja boa, não importa que música mostramos ou analisamos.
Professor – E não achas que isso que dizes está a ser feito?
Aluno – Cada vez por menos pessoas. E deveria ser ao contrário. Deveria haver cada vez mais pessoas a fazerem trabalhos interessantes.
Professor – E como sabes tu que não há? 
Aluno – Pelo que leio e assisto. Parecem-me “titúlos” exóticos, mas com pouco recheio… Mas Professor diga-me sinceramente: não sente por vezes vontade de mostrar o seu gosto às outras pessoas?
Professor – Tu devias ter ido para musicólogo histórico…

MELHOR PORQUÊ? (Parte 2)

MELHOR PORQUÊ? (parte 2)


Triste época esta, em que é mais fácil
desintegrar um átomo do que um preconceito
(Albert Einstein)


#01_ O papel de relativisar

Se é verdade o que diz Einstein, então a etnomusicologia tem que estar feliz com ela própria, pois acabou com um grande preconceito: o de que a música erudita era "superior" às outras músicas. Pelas questões que suscita, a etnomusicologia tem um papel específico relativamente à musicologia tradicional, uma vez que obriga a relativisar – sublinhando a especificidade da nossa cultura – as obras e práticas musicais ocidentais e a considerar a “nossa” música como uma modalidade particular do “fazer musical” universal.
#02_ O mundo inteiro

Uma etnografia da etnomusicologia não pode existir se não tratarmos primeiro de obter uma sua definição, mas não é fácil chegar a uma que seja totalmente satisfatória sobre o que é a “etnomusicologia”. E ainda bem: é sinal que se está sempre a pôr tudo em causa. 
A etnomusicologia surgiu como um ramo da musicologia, mas também da antropologia ou da etnologia. Posso arriscar uma definição mais geral, referindo que a etnomusicologia estuda as músicas de diversos grupos étnicos e comunidades culturais do mundo inteiro. Assim podemos afirmar que, pelos seus objectivos e pelos seus campos de intervenção, a etnomusicologia participa na construção progressiva de uma musicologia geral.

#03_ De bárbaros & selvagens a primitivos

Desde o artigo de Alexander John Ellis sobre a análise de escalas estranhas à nossa cultura ocidental (e que é considerado o primeiro trabalho etnomusicológico), até aos nossos dias, a etnomusicologia tem vindo a evoluir. Desde os primeiros tempos em que os objectivos eram essencialmente de “comparação” da escola de Berlim (Stumpf, Abrahm, Hornbostel) até aos anos de 1960 onde Wiora e Sachs serão os últimos a arriscar a construção, dentro de uma perspectiva evolucionista, de uma história geral da música incluindo as músicas de tradição oral, muito tem mudado nesta disciplina. A etnomusicologia americana de entre as duas guerras, era sobretudo descritiva e monográfica, mas a observação etnográfica foi ganhando cada vez mais um papel importante. Deu-se prioridade à investigação de campo em favor de lidar com gravações pré-existentes: Frances Densmore, David McAllester, Alan Lomax. Mantle Hood, na tentativa de colmatar a distância entre a cultura do pesquisador e a do autóctone, funda o Instituto de Etnomusicologia na UCLA. Para Hood a melhor forma de se estudar a música de outra cultura, consiste na sua intensiva análise por dentro, tornando-se assim o investigador num intérprete. A etnomusicologia na Europa também vai para o terreno no sentido de preservar as fontes musicais nacionais. Era o “Nacionalismo”: Bartók e Brailoiu. No seu “Antropologia da Música” (Alan Merriam, 1964) o ponto de partida da abordagem já não é a musicologia mas sim a antropologia pois segundo ele os fenómenos musicais só são verdadeiramente entendidos, pelo contexto da cultura onde o objecto de estudo está inserido. A etnomusicologia é o estudo da música dentro da Cultura”. Blacking vai mais longe e considera que “a cultura determina integralmente a música” e é através da etnografia que convém começar o estudo de uma cultura musical. Esta “antropologia musical” deu origem a um novo ramo de pesquisa muito importante: os estudo de etnoteorias. Zemp (com o seu filme sobre os “are are”, onde vemos os sábios da tribo a explicarem o seu sistema musical) e Feld com o seu livro Sound and Sentiment consagrado aos Kaluli da Nova Guiné, que abriu uma nova página à etnomusicologia ao mesmo tempo que a elevou a um novo grau de exigência.

#04_ Omo lava mais branco
Paralelamente à emergência e ao desenvolvimento da antropologia da música, uma corrente aparecida na Europa e na América, propõe analisar a estrutura interna da música, com a ajuda de métodos emprestados da linguística estrutural.
 Do ponto de vista metodológico a etnommusicologia oscila entre dois polos. De um lado ela tem uma vocação comparativa e universal na medida em que se propõe estudar o ensemble de música do mundo ou como Nettl diz com humor, “A etnomusicologia é um glutão”. Esta orientação manifesta um carácter “ético”. Do outro lado existe o carácter “émico” ou seja, apoiar-se sobre conceitos e o sistema de pensar dos autóctones. Em último caso, a análise deverá ser feita pelo próprio autóctone. A etnomusicologia, como instituição, é um produto da nossa civilização ocidental e interessa-se pelo “fazer musical” mas usando categorias de pensamento e ferramentas metodológicas próprias da nossa história científica. Assim, à concepção etnocêntrica de “música: uma linguagem universal”, opomos hoje a especificidade das culturas musicais.
Do ponto de vista das estruturas sonoras e dos processos composicionais, a comparação de produções e ensinamentos do planeta, fez surgir uma espantosa diversidade. Assim - e dentro das músicas extra-europeias – temos as músicas ditas de Arte (China, India, Bali) e as músicas tradicionais populares (Pigmeus, Aborígenes da Austrália ou indíos americanos). Esta divisão é semelhante à que existe nos países europeus entre a música clássica erúdita (Bach, Beethoven, Schoenberg) e a música rural popular. Durante muito tempo acreditou-se que se podia opor a segunda à primeira, com o argumento de que a segunda não tinha teoria, mas depois dos trabalhos de Zemp e Feld, deixou-se de poder definir etnomusicologia como “a ciência que estuda as músicas sem teoria”. Quais são então as fronteiras da etnomusicologia? As músicas de tradição oral? Sabemos que a oralidade não é um critério suficiente. As musicas populares? Mas então metemos as músicas populares rurais de um lado e o jazz e as músicas de variedades do outro? Somos tentados a dizer que a etnomusicologia se interessa por tudo o que a musicologia clássica não estuda. Mas até aí podemos ter surpresas. A etnomusicologia de hoje e do futuro, absorverá a música de Mozart e Wagner no mesmo pé de igualdade que as músicas dos Pigmeus e dos Papuas. Baker falava-nos de uma “música dos selvagens” e em 1956 Nettl usava o termo “culturas primitivas”. Mas depois de Radin e Lévi-Strauss, sabemos que os “selvagens” e os “primitivos” pensam. O conhecimento de categorias específicas que sustêm cada uma das culturas musicais do mundo, os seus diferentes sistemas musicais (diferentes do nosso) e a emergência de uma consciência musical universal são contribuições da etnomusicologia na luta contra o racismo estético e contra o racismo em geral. As condições materiais de um capitalismo tardio (a explosão das novas tecnologias da comunicação, a informática, a abertura do cyberespaço, as lutas pela reivindicação das diferenças, as migrações) estão em vias de mudar drasticamente o nosso meio de vida. O colapso do comunismo e, em geral, o “esgotamento” de políticas baseadas na diferença de classes, cede terreno a uma gama difusa de “políticas de identidade”, fundadas sobre as diferenças étnicas, sexuais ou de género e de grupos normalmente humilhados e que lutam por uma igualdade. Assim, era de supor que certas ideias pós-modernas, afectassem as perspectivas teóricas, os objectivos e as questões da etnomusicologia recente. Certos textos etnomusicológicos contemporâneos adquiriram um grau de sofisticação teórica, um poder crítico e uma pertinência social, porque se emanciparam dos laços que mantinham tradicionalmente com a etnologia e a musicologia. Estes textos, libertos de uma identidade disciplinar, buscam inspiração em teorias modernas do pós-estruturalismo, do pós-colonialismo, do pós-marxismo e da crítica feminina.

#05_ Um sujeito social e linguísticamente descentrado e fragmentado
As ideias que estão na base de certo pensamento etnomusicológico actual, provém em grande parte da apropriação, talvez tardia, de teorias europeias do pós-guerra: a escola de Frankfurt, especialmente com Adorno, as estruturas linguísticas e antropológicas de Jakobson e Lévi-Strauss, o pós-estruturalismo de Foucault, Deleuze, Derrida e Lacan e o pós-marxismo de Althusser, a sociologia de Bourdieu e finalmente a nova história de Jaques Le Golf e Paul Veyne, para citar só estes dois. O pós-modernismo rejeita a ideia moderna de um “sujeito racional unificado” em favor de um “sujeito social e linguísticamente descentrado e fragmentado” (Foucault, 2005). O pós-modernismo elimina o sujeito enquanto lugar e origem do discurso. Encontramo-nos face a uma “crise de representação” (ou de referencial) que, tudo somado, consiste em eliminar a identidade entre as palavras e as coisas. Tal como a visão do Outro das teorias pós-coloniais, a crítica feminista exige o reconhecimento do direito das mulheres, o direito de se representarem elas mesmas nestes domínios da vida de onde foram excluídas por um patriarcado que lhes retirou as funcionalidades significativas e representativas, eliminando a sua presença histórica.

#06_Uma nova cyberética

Actualmente a investigação de campo está muito distante das “missões folclóricas” onde o principal objectivo era o de recolher a maior quantidade de peças possíveis, para depois as analisar, descrever e explicar, sentado confortavelmente no escritório do investigador. As relações assimétricas criadas neste contexto colonial neste tipo de trabalho de campo, não podia de modo algum captar os aspectos humanos interpessoais e o reconhecimento de valores específicos das sociedades estudadas. A fim de obter uma maior compreensão intercultural, a etnografia musical actual reconceptualiza o trabalho de campo, procurando novos modelos etnográficos numa pluralidade de inspirações: feministas (McClary, Koskoff), a fenemenologia (Titon, Friedson), a hermenêutica (Rice), etc. Nesta linha de pensamento, as questões que se levantam ao etnomusicólogo actual são: “Que podemos nós descobrir através de investigação de campo, sem explorar os detentores da cultura estudada”? “Que é que o etnógrafo musical pode trazer ao conhecimento do ser humano”? “Que género de obrigações de reciprocidade estão incumbidas no etnomusicólogo perante os membros da cultura que estuda”? Gooley refere que passar do estudo da música como objecto ao estudo da música como cultura, conduz a praticar uma etnomusicologia reflexiva na qual o investigador não se pode situar de fora da cultura como observador de uma cultura objectivamente observável. É necessário que explique a sua posição epistemológica e o modo como se relaciona com a cultura estudada. O etnomusicólogo actual tende a integrar o seu discurso dentro de um contexto mais vasto de outros discursos, quer sejam antropológicos, sociológicos, filosóficos, históricos, etc. 

#07_ Pósmodernizar a Etnomusicologia
A etnomusicologia abandonou – porque desnecessária e simplista – as oposições entre “popular” e “erúdito”, entre “oral” e “escrito” e dentro dessa pressuposição, propõe um grupo de métodos e atitudes diferentes, como necessário para o estudo dessas categorias musicais. É provável que a actual musicologia esteja a passar de uma espécie de transição Hegeliana para um regime transdisciplinar que pode levar à própria dissolução de uma disciplina com fronteiras bem estabelecidas. “Pósmodernizar” a etnomusicologia, pode ser o seu fim.




La musique c´est du bruit qui pense
(Victor Hugo)






#01_ Só sei que algo sei

Ao contrário da minha vida profissional de músico, na qual existe uma continuidade e uma evolução, a minha actividade académica é caracterizada por uma grande irregularidade. Após ter feito a primária e a secundária, não concluí o liceu, tendo desistido dos estudos com o antigo sétimo ano incompleto. E assim me mantive até 2008, onde decidi concluir os estudos e entrar para uma licenciatura. Fiz então um ano de Licenciatura em musicologia na Universidade Nova. De seguida, obtive entrada directa (por via curricular), para o mestrado em etnomusicologia, onde completei um ano lectivo. E agora encontro-me na fase da escrita da dissertação, mas direcionada para a sociologia da música. Não li e desconheço quase por completo, os nomes cimeiros da etnomusicologia, da musicologia histórica ou da sociologia. Assim, o meu conhecimento é o de ter lido livros ou ensaios sobre certas matérias que me interessavam e ter ouvido (conferências, palestras, ou conversas privadas) falarem sobre certos assuntos musicais e musicológicos.
Logicamente que tenho uma vivência como músico (compositor e improvisador), que me fez viajar pelo mundo (Cuba, China, Japão, EUA, África, Europa), e assim, vivenciar em pessoa certas práticas musicais e pensamentos musicológicos por parte de muitas pessoas (compositores, improvisadores, musicólogos, etnomusicólogos, sociólogos, filósofos, psicólogos, historiadores). É esta a minha principal fonte de conhecimento: a Universidade da Vida. Desta forma, este ensaio, reflete isso mesmo: uma ausência de certos conhecimentos ciêntificos e culturais, que me levem a poder afirmar ou legitimar as minhas ideias. Além disso não domino o “academês”. Nesse sentido e por se tratar de tentar elaborar uma etnografia da etnomusicologia, decidi recorrer a pessoas, que me pudessem dar aquilo que os sociólogos chamam de “testemunho” (em etnomusicologia chama-se a isto “investigação de campo”). Escolhi dois etnomusicólogos: o António Tilly (Professor do Instituto de Etnomusicologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa) e, o Ricardo Andrade (mestrando em etnomusicologia da FCSH, da Universidade Nova de Lisboa) e, um sociólogo da música, o Mário Vieira de Carvalho (Professor de Sociologia da Música da FCSH, da Universidade Nova de Lisboa). Através de entrevistas por e-mail, fui pondo uma série de questões ou frases para estes comentarem e responderem. O texto que se segue, é o resultado desse nosso debate.

#02_ Dream Team

Tomemos como ponto de partida deste nosso capítulo, esta frase do Professor Mário Vieira de Carvalho, em que nos fala da

“neutralidade” do observador na etnomusicologia

e agora vejamos como esta frase é refutada pelo Professor António Tilly que diz que:

Esta frase está errada. Não há qualquer neutralidade. O Etnomusicólogo não é neutro. Ninguém é neutro nem imparcial. O etnomusicólogo dá a sua explicação face ao objecto que estuda e assina por baixo. Por outro lado, o Etnomusicólogo não se limita a descrever. O Etnomusicólogo tende a observar para compreender e explicar. O Etnomusicólogo não diz como o mundo deve ser, nem se a música está certa ou errada e não prescreve uma solução para corrigir "erros". O Etnomusicólogo só se refere aos juízos de valor quando estes estão em jogo nas práticas musicais que estuda (Anthony Seeger). A componente ideológica da etnomusicologia faz-se sentir de outras formas, como a escolha do objecto, por exemplo (ver Malm e Wallis).

 Mário Vieira de Carvalho contrapõe com:

O melhor é responder que o que eles (etnomusicólogos) dizem sobre música também só vale para eles. Não vale para o Stockhausen, nem para si, nem para mim, nem para uma tradição de pensamento crítico que já vem dos gregos e sem a qual não existiria nem ciência, nem etno, nem universidades... Para quê afinal ciência se a regra é... a cada um segundo as suas crenças...? O problema é que os etnomusicólogos quando estão doentes não vão ao curandeiro, mas sim ao hospital. Contudo, em teoria etnológica tanto vale a crenca do médico diplomado como a crença do feiticeiro local... ou na Virgem de Fátima... A etnomusicologia é ela própria um fenómeno que carece de estudo etnográfico...

Esta “neutralidade” ou “não-neutralidade”, tem para mim muita importância, pois é o objectivo deste meu ensaio: o de poder determinar se existe “boa música” e “má música”; se há “melhores” ou “piores” músicos, ou seja, estou afinal a falar de “gosto” e da subjectividade ou não deste. É possível afirmar-se de uma forma cientifica que uma música é “boa” e que outra é “má”? Para Mário Vieira de Carvalho,

A ciência é contextual. Deixou de existir a noção de um ponto de vista absoluto de verdade fora do espaço e do tempo. Muito mais em questões artísticas. Não se pode provar, portanto. Podemos é sair deste tipo de questões, que não levam a lado nenhum. Se na música o social é o comunicativo, o que interessa é analisar as estratégias de comunicação, e então aí podemos entrar com outras categorias. Por outro lado, o facto de toda a música ser contextual não significa que a cultura europeia deva abdicar das suas próprias crenças e/ou conquistas. Temos o direito de considerar Beethoven um filósofo, que nos diz por música da essência da vida e das coisas - do humano, e lamentar que haja quem não o ouça, assim como lamentamos que haja quem não frequente o teatro de Shakespeare ou não leia Pessoa e confine o seu mundo ao "preço certo", ao "Quim Barreiros" ou às revistas cor-de-rosa. Se tudo é igualmente válido como "cultura", para quê estudar, para quê aprender a ler, para quê Escolas, Academias, etc., para quê, afinal "pensar", fazer "ciência " - qualquer tipo de ciência, a começar pela própria "etnomusicologia"? 
Conhecimento é poder, ensina o Foucault. Logo o estudo das culturas musicais ditas populares ou extra-europeias é um exercício de poder duma ciência europeia chamada "etnomusicologia" sobre aqueles que pretensamente não possuem o método científico, por não terem adquirido o conhecimento crítico necessário, o treino legítimo, que traz a chancela das universidades europeias ou de tradiçao europeia. O "etnomusicólogo"  - diplomado por uma universidade - não reconhece a quem não tenha o diploma o treino legítimo para fazer "ciência digna desse nome".
Mas o que é que se passa com a música? Não é ela, na tradição dita erudita europeia, aprendida nas mesmas universidades ou escolas superiores, não é ela resultado da aquisição de um conhecimento crítico, não se subordina ela a um treino legítimo, sem o qual o diplomado não desenvolve o “métier” exigido para fazer música "digna desse nome"? Nesse sentido, estamos numa posição de poder idêntica: somos depositários de um “know how” musical que consideramos corresponder a critérios que outras manifestações musicais, sejam elas populares ou extra-europeias, desconhecem.
As posições são paralelas. Reconhecemos à etnomusicologia - ciência europeia - um know how que lhe permite colocar-se numa posição de conhecimento privilegiado, relativamente a pessoas oriundas de qualquer cultura sem formação nessa área. (Não há discurso “emic” senão já como parte integrante do método etnomusicológico. Para haver discurso “emic” é preciso um etnomusicólogo que o identifique como tal).
Então temos também de reconhecer aos músicos e musicólogos estudiosos da chamada tradição erudita europeia o “know how” que lhes permite colocarem-.se numa posição privilegiada de conhecimento crítico sobre a sua própria música e de estabelecerem juízos de comparação e juízos críticos sobre todas as manifestações musicais às quais tenham acesso.
Isto para dizer que nem a música europeia (erudita) nem a etnomusicologia podem escapar à sua origem e centralidade europeias. Achar que o relativismo dos "valores" só se aplica à música, mas não à "ciência" da música (neste caso, à própria etnomusicologia) é uma aporia, uma dificuldade lógica incontornável.
Ou o relativismo é geral, e então não vale a pena fazer ciência, nem portanto etnomusicologia, pois qualquer discurso cognitivo sobre música é legítimo e não há critério para determinar qual é válido ou inválido. (Tudo se reconduz a uma questão de "gosto"). Ou então, se o não é, há que reconhecer também que o relativismo não pode valer somente para as manifestações musicais,  igualizando-as e negando a possibilidade de critérios estéticos e de análise crítica que permita aos depositários do “know how” musical europeu defender e promover aquilo que consideram ser os seus "valores" - a "música digna desse nome", comparável à "ciência digna desse nome". Neste sentido, sim, é possível através da reflexão estético-filosófica "fazer falar a música" - valorá-la. Talvez nos ajude nesta discussão a contraposição entre Cultura e Civilização (remeto para Norbert Elias).

Carvalho, remete-nos para a ideia de “especialista”. Se alguém tem o know howcientifico, pode e deve, falar daquilo que ele sabe e estudou ao longo da vida. Para Carvalho deve-se analisar as estratégias de comunicação, porque na música o social é o comunicativo. Só deixando de lado as categorizações de “boa” ou “má”, de “melhor” ou “pior”, só aí, é que podemos jogar com outras categorias e, uma nova forma de analisar e categorizar a música. Vamos ver o que nos diz sobre este assunto, o musicólogo Hans Eggebrecht:

Para julgar ou valorizar a música, há fundamentalmente (embora só num primeiro momento) duas instâncias: o juízo sensível e o juízo cognitivo que, por seu turno, dependem respectivamente da compreensão sensível e cognitiva.
O juízo sensível ou estético move-se – como a compreensão sensível ou estética (idealmente falando) – para lá dos conceitos linguísticos; assenta na impressão sensível, na sensação que opõe à música uma reação judicativa. Pode formar-se na total ausência de expressões, pode resumir-se numa única palavra: “bom” ou “mau” (“Como isto é belo” ou “Tão feio!”).
O juízo cognitivo, pelo contrário, é de tipo abstracto. Procura indagar as razões, o porquê algo agrada ou desagrada ou, exagerando, os motivos do “bom” ou do “mau”; quer no sujeito (por ex. Ao nível da sua formação musical), quer – de modo analítico – no objecto, a própria música.

A conclusão a que chegamos ao ler esta afirmação de Eggebrecht, é a de que estes dois juízos – sensível e cognitivo – variam no exercício de uma audição musical. Segundo Eggebrecht,

A faculdade de compreensão e valoração cognitiva de um leigo pode estar só pouquíssimo desenvolvida, enquanto no conhecedor estas duas instâncias interagem.

Então de que depende a qualidade de uma música? Para o mesmo Eggebrecht,

O juízo, sensível ou cognitivo, sobre a boa ou má qualidade de uma música depende de muitos pressupostos, que se podem distinguir, em primeiro lugar, em subjectivos (também historicamente condicionados) e objectivos (ínsitos na própria música).

Fala-se aqui de “subjectividade”. Será o “gosto” somente “subjectivo”? Esta é a resposta de Eggebrecht:

Subjectivo é o gosto que, todavia, tem sempre também motivos objectivos (objectiváveis): disposição, experiência, formação, idade, hábito, pertença a um grupo, etc. O juízo de gosto, que decide sobre o bom e o mau, pode modificar-se no plano dos seus motivos objectivos. Deste modo, por exemplo, a barreira que impede a recepção da música moderna, ou da antiga, pode reduzir-se ou até remover-se inteiramente através do hábito (a escuta) e a compreensão cognitiva.

Ou seja: o “gosto” educa-se! Seja pelo hábito, experiência, estudo, análise e observação, mas também pela “compreensão cognitiva”. Para Mário Vieira de Carvalho, no “gosto”, as valorações são diferentes consoante o contexto:

O "gosto" é contextual - tal como a música. Traduz-se nessa avaliação do que é "bom" ou "mau".

António Tilly, quando lhe perguntamos se acha que o “gosto” se educa, responde-nos:

Acho. Que se educa, que se aprende, que se simula, que se adquire.
Já o "bom gosto"... é mais difícil.

Vemos aqui nesta resposta uma reticência, não sobre se o gosto se pode educar e, portanto, evoluir, mas apenas e unicamente na palavra que o antecede, o “bom gosto”, mas mesmo esse para Tilly, não é inexistente, é apenas “mais difícil”. Mas, mais difícil de atingir, ou “mais difícil” de educar? Dei ao Professor António Tilly, a seguinte frase para que ele a comentasse: Para mim, Bach é melhor que Tony Carreira. Mas isso é para mim. Pode não ser para outros. Logo, como não existe uma forma de provar que um compositor é melhor que outro, não se pode pôr um juízo de valor.  Este foi o comentário de Tilly:

Tudo correcto menos a conclusão da frase que deverá ser esta: "não se pode fazer um juízo de valor que sirva para tudo, universal, isto é, não há "um" valor, mas haverá (como se tem comprovado em mais de 100 anos de estudo da música em diversos contextos), vários juízos, dependendo dos valores que podemos afirmar serem "culturais". Não há uma só cultura, logo não há um só juízo. E mesmo do mesmo grupo cultural deve ter-se em conta "o individual.

Ou seja, embora Tilly ache que,

No domínio da ciência, há que conhecer os pressupostos científicos, i.e., o conhecimento produzido por outros e o seu fundamento.

Acrescenta depois que,

Uma Ciência têm de fundamentar o seu raciocínio segundo métodos científicos. Esse raciocínio tem de estar assente em factos comprovados e que se têm como verdade. Sendo uma Ciência, a Musicologia, tem de EXPLICAR. Assim só será uma Ciência se EXPLICAR por que é uma música "superior" a outra que será "inferior". Se não der uma EXPLICAÇÃO fundamentada segundo os pressupostos da própria Ciência, não pode ser considerada uma Ciência, evidente. Daí ser auto-referencial. A negação da explicação é a negação da atitude científica. A incapacidade da explicação traduz-se na incapacidade do acto científico. O facto de as explicações científicas se sucederem e de se vir a provar que a explicação anterior está errada é uma das características essenciais do trabalho científico e a razão porque o conhecimento científico é dos únicos que se verifica e se valida a sí próprio. Esta é uma das razões pelas quais se deve acreditar e fomentar o conhecimento científico. A presunção que "o que se sente" é verdade e será verdade, bem como a negação da explicação desse sentir não é mais que egocentrismo assente na total recusa da dúvida, sendo que a dúvida é o fundamento da ciência.
Sendo a Musicologia uma Ciência - as suas conclusões são referenciadas nos trabalhos de outros, dos colegas. Podem negá-las ou corroborá-las, mas não se faz ciência sem conhecer o conhecimento cientifico produzido anteriormente.

Peguemos neste statement e, vamos então tentar fazer o que nos indica Tilly, ou seja, usar o conhecimento produzido por outros e o seu fundamento, para tentar abordar esta mesma questão e, voltemo-nos de novo a Eggebrecht:

O juízo que considera uma canção ligeira inferior a um lied de Shubert, pondo as duas obras numa interrelação de confronto, pode modificar-se logo que o ouvinte abandone o ponto de vista comparativo e, ao alterar a sua atitude receptiva em face do género musical, tome atitudes e critérios críticos capazes de distinguir com base na função: para eles esxistirão então canções ligeiras boas e más, tal como existe a boa e má música culta – mas as barreiras levantadas pela limitação dos horizontes subjectivos podem ser aqui e além um factor de inibição: todas as canções ligeiras são má música e não me interessam e, vice-versa, a música culta está demasiado longe de mim e não me diz respeito.

Isto é muito interessante! Eu já tinha levantado esta problemática no meu livro “A Musicologia na Era do Porquinho Babe”, onde eu perguntava:

Será que um mau compositor da dita música erudita ocidental é melhor que um bom músico de rock, simplesmente porque pertence a essa elite musical da qual a História da Música foi feita até esta data? Não será esta visão das coisas uma espécie de apartheid musical? Por muito que nos custe afirmar, será que o maior representante português da dita música erudita ocidental - o compositor Emmanuel Nunes - irá ter uma importância histórico-musical maior do que, por exemplo, um compositor de jazz como o Thelonious Monk? E, seguindo essa ordem de raciocínio, será que um compositor como o Luis de Pablo, figura ímpar na música erudita espanhola, terá maior significado histórico-musical que a dum guitarrista de rock como Jimi Hendrix?

Diríamos não poder pôr as coisas dessa forma: são tipologias diferentes e como tal devem ser vistas e analisadas sob diferentes pontos de vista. No entanto, isso raramente acontece: os livros da dita História da Música – geralmente - não se debruçam sobre outras músicas, ou se o fazem é num último capítulo, uma insignificância de páginas em relação à música séria e a maior parte das vezes, trata-se essencialmente do desfiar dum rosário de nomes, datas, e efemérides sem qualquer perspectiva estética e onde ficamos com a impressão de que não percebem patavina do que estão a falar. O mesmo podemos nós dizer em relação às músicas de outras civilizações: as músicas chinesa, indiana, japonesa; o gamelão ou a música africana; são introduzidas num primeiro capítulo, numa espécie de aquecimento para a verdadeira música -  a erudita ocidental.
Mas, façamos uma pausa para reflectir: com Beethoven, uma das importantes mudanças que se dá a nível sócio-estético-musical é, a da música deixar de ser essencialmente uma música funcional - uma missa, uma ocasião festiva (casamento, aniversário, baptizado) - e passou a ter um carácter de posteridade, independente dos gosto e estética do momento - a chamada música pura - imbuída de personalidade, autonomia e originalidade. Dessa forma, não será que a originalidade de um Monk, não terá mais autenticidade do que uma composição do Emmanuel Nunes? Será que numblindfold test – e usemos como exemplo um musicólogo polaco - reconhece facilmente se uma obra é do compositor Nunes?  No entanto um amador de jazz, mesmo sem conhecimentos musicológicos, reconhece poucos segundos depois de ouvir um solo de piano, que se trata do Monk. Na sua aparente simplicidade melódica, harmónica e rítmica, o compositor Thelonious Monk atingiu uma autenticidade maior do que a do compositor Emmanuel Nunes na sua área e, dessa forma, logrou alcançar uma originalidade idiossincrática musical que o releva para uma posição mais importante que a do compositor português.
O mesmo se passa então, em relação à música do Luis de Pablo: será que esta é perceptível como idiossincrática, ou poderá por vezes ser confundida com a de um outro compositor que seja, digamos assim mais autêntico? E não se passará o mesmo com o guitarrista rock Jimi Hendrix, ou seja, o deste possuir uma sintaxe musical idiossincrática, por mais insignificante que nos possa parecer, mais autentica que a do compositor espanhol?
Dir-se-á por comodismo ou receio, que não se podem por as coisas dessa forma; que as diversas músicas têm todas elas a sua importância na História; devemos tratá-las cada uma no seu lugar - uma espécie de comboio com várias carruagens, como nos afirmou Xenakis - e que, por uma questão de tradição, conveniência e bom senso, a carruagem da frente é a da música erudita ocidental, depois poderão vir a das músicas etnográficas logo a seguir e depois a música popular, termo onde, para os musicólogos académicos reaccionários, cabem todas as outras músicas como o jazz ou orock.
Felizmente que uma nova musicologia surgiu. Uma musicologia atenta às novas realidades: hoje podemos no conforto da nossa casa, através de uma aparelhagem de som ligada a um computador, ouvir uma sinfonia de Mozart, a música dos esquimós, um tema de jazz, uma canção rock, música produzida pelas ondas cerebrais do compositor, uma valsa de Strauss ou um gamelão de Java. Uma realidade tecnológica e mediática bem diferente daquela em que para se ouvir essa Música de Arte, tinha de ser ao vivo e ser-se de determinada classe social. Assim, existe “boa” e “má” música em todos os estilos musicais. Só falta saber se conseguimos um juízo de valor objectivável, para afirmar se uma “boa” música da música “culta”, é melhor que uma “boa” música da música “ligeira”. Recorramos de novo a Eggebrecht:

As condições objectivas de que depende o juízo do bom e do mau em música residem, à primeira vista, na própria música. São identificáveis por meio de análise musical, contanto que o trabalho analítico oriente a sua problemática para a qualidade, para o valor da música.

Se usarmos a ferramenta musicológica que é a análise musical, poderemos – pelo menos dentro de um determinado estilo musical – determinar se uma música é “melhor” ou “pior” que outra. Mas e entre músicas de estilos diferentes? Eggebrecht diz-nos:

O género da música torna a desempenhar um papel importante. Na música mais artificiosa, que como música composta quer ser livre, isto é, provir de si, a análise musical costuma prescindir inteiramente das condições funcionais da composição para se dedicar inteiramente ao objecto musical enquanto objecto de um universo estético auto-suficiente. Aqui pode retomar-se a questão do valor da música, da sua qualidade, no conceito de “património informativo” estético, que inclui os aspectos de beleza (porque inteligível no plano da análise), da novidade e originalidade, poliedricidade, densidade, mas também da compreensibilidade na conjunção de sentido e conteúdo. O trabalho analítico é capaz de reconhecer se e de que modo uma composição se distingue qualitativamente de outras, quais as características boas e más de um produto musical; e ao fazê-lo, é possível que, às vezes, seja vencido pelo assombro provocado pela arte compositiva. A compreensão e valoração cognitiva da música está, pois, sujeita a limites.

Ou seja, existem variados factores analítico-musicais, que nos fazem dar a saber, porque determinada música é “superior” ou “inferior” a outra. Mas, e no caso das músicas funcionais? Será igual o processo a utilizar? É Eggebrecht que de novo nos elucida:

O caso é diferente na música intencionalmente funcional, isto é, naqueles géneros de música que não surgem no território livre da arte, mas são determinados por fins, de modo consciente e programado, na sua factura. Não se deve aqui valorizar a qualidade da música em si; a questão diz respeito à relação entre música, como ela é, e o fim para que serve.

E dá-nos o exemplo da música de salão do final do século XIX:

Se aqui se tiverem em conta os critérios objectivos do bom e do mau em música, e se se buscar por meio de análise musical o valor artístico e a riqueza informativa de tais composições, o confronto com a música isenta de vinculos funcionais é automático e o juízo sobre elas só pode ser negativo: epigonais, estereotipadas, vazias, superficiais, inconsistentes, vulgares, banais – má música… Semelhante análise musical depressa se tornará um exercício cansativo e afigurar-se-á inútil, chegando sempre ao mesmo resultado: periocidade de oito compassos: esquemas formais elementares, conteúdo unidimensional (por ex. Melodia com acompanhamento), fórmulas de representação, expressão e virtuosismo, etc. - má música. Mas, se indagarmos os fins ou, mais exactamente, as necessidades a que este género de música responde – atmosfera e entretenimento de salão, busca de prestígio, imitação cultural, exigências sociais do mundo feminino, etc.), então, o fim transforma-se em norma e a sua realização em critério de valoração… O que aqui acabou de se dizer acerca da música de salão pode transferir-se, no fundo, para toda a música intencionalmente funcional: a música dos mendigos e de rua, a música dos comediantes e circenses, a música ligeira, as canções de êxito, todos os géneros e modos da música pop, música de bandas, música de ambiente nos grandes centros comerciais e nos locais de trabalho,  música publicitária, música de filmes, velha e nova, etc… O bom e o mau, tais como se concretizam na feitura, no tesxto e na qualidade do som da música funcional, qualificam-se com base na consecução do fim, e o pior produto artístico poderia ser o melhor produto funcional.

Agora que começamos a entender as diferentes noções da “boa” e “má” música numa visão musicológica, passemos a ver de que forma um etnomusicólogo vê esta problemática. Dei a seguinte frase ao Professor António Tilly para comentar: "Um etnomusicólogo não tem de dizer se um músico ou uma música são melhores que a outra; tem é de analisar a prática musical". Eis o seu comentário:

Um etnomusocólogo estuda a música e os valores que a enformam, i.e. que determinam e regulam a sua prática (i.e. a "cultura" para Geertz, por exemplo). O etnomusicólogo pretende compreender os valores subjacentes às práticas musicais e explicá-las. De uma forma fácil, pretende responder à pergunta: "porque é que estes tipos fazem estes sons?", logo, não tem de afirmar que música é melhor que a outra, nem tem forma de o fazer. Um etnomusicólogo não usa a cátedra (nem a ciência) para impor os seus gostos pessoais. Um etnomusicólogo também sabe que os seus gostos (e os dos outros) são o resultado de muitos factores que, no seu todo, constroem a noção de "cultura". Pode e fá-lo frequentemente, encontrar alguns desses factores quando estuda as opções estéticas dos músicos e das práticas musicais que estuda.

Vemos neste depoimento que, para Tilly, não existe forma de se mostrar que uma música é melhor que outra. Mas também observamos que ele nos diz que os etnomusicólogos estudam a prática musical e não a música em si. Assim, creio podermos deduzir, que não cabe aos etnomusicólogos (seja por desinteresse destes, seja pela forma destes pensarem a música), explicarem ou demonstrarem porque é uma música melhor que a outra. Não é simplesmente do foro desta disciplina. Isto, a aceitarmos como válido este seu comentário. Entendi então formular ao António Tilly, uma questão relacionada com o que o filósofo Kant entende por “senso comum”, Diz-nos Kant:

Somente formulando a hipótese da existência do senso comum é que se pode pronunciar o julgamento do gosto

Desta forma questionei Tilly com a seguinte pergunta: “acreditas no "senso comum"? E se sim, vê-lo como sendo universal?”. Tilly respondeu da seguinte forma:

Não se trata de "acreditar" no senso comum. O senso comum existe e é o fruto do conhecimento empírico e não do científico. Acho que é melhor reveres as definições actuais de Ciência. Isso aprende-se nas Universidades. Qualquer conhecimento pode ter a sua validade. O conhecimento religioso serve o bem-estar de muitos indivíduos. O senso comum (que Bourdieu reflecte no conceito de "doxa") é algo com que o etnomusicólogo trabalha constantemente. Exactamente por isso os resultados da acção científica entram em conflito com os valores do senso comum. O conhecimento do senso comum é o ponto de partida para a ciência  pós-iluminista (Descartes); é no questionar o que se tem como verdade (doxa) que nasce a atitude cientifica.

Para Tilly, o senso comum não é cientifico, mas o resultado de um conhecimento empírico. Mas, por exemplo, Gianni Carchia acha que

Na noção de gosto, ou seja na noção de um juízo estético dotado de uma universalidade subjectiva e sentimental, confluem duas esferas: uma gnoseológica e outra moral, ambas presentes na pré-história da noção de gosto, ou seja, na ideia de “sensus communis.

Ora uma “gnoseologia”, não é mais que uma ciência do conhecimento. Realce-se neste comentário a palavra “ciência”! De seguida formulei uma série de perguntas ao Ricardo Andrade, perguntas essas que muitas delas só exigiam uma resposta do tipo “sim” ou “não”, mas que ele, achando que dessa forma eu estaria de certa forma a “manipular” ou a “limitar”, o seu direito de resposta, optou por responder a todas as questões, como se uma só pergunta eu lhe tivesse feito. As perguntas ou frases para comentar eram as seguintes: comente a seguinte frase: "Em Ceia o ar é menos poluído que em Lisboa. No que diz respeito à pureza do ar, é melhor para o ser humano viver em Ceia do que em Lisboa"; pergunta: “Existem melhores e piores arquitectos?... melhores e piores sapateiros?; pergunta: “Gostas de tony carreira?; pergunta:” Se for dado a dois arquitectos o mesmo material para desenharem uma casa e a de um ficar muito bem (de pé) e a do outro cair, pode-se dizer que - naquele caso - um arquitecto foi melhor do que o outro no objectivo?; pergunta: "Gostar" de água! Achas que é um dado universal de que em todo o planeta onde existe ser humano, a água seja apreciada por todos? E se a tua resposta for não, não achas que são “a excepção que confirma a regra”? E esses que dizem que não gostam (que gostam é de vinho ou aguardente), se passassem por uma experiência de seca no deserto durante dias e, quase a morrerem lhes fosse concedido um pedido, o que ele pediriam? Aguardente, vinho ou água? E a sua resposta foi a seguinte:

Bem, eu respondo a tudo no mesmo texto, porque, como é óbvio, as perguntas estão construídas com o propósito de corresponder a um pressuposto teu que concebes enquanto evidente; logo, é necessário enquadrar e sequenciar as ideias. Dá-te jeito um simples "sim" ou um "não" enquanto resposta; o problema, é que a realidade humana, em imensos aspectos, é algo mais complexa do que simples lógica booleana. Para além de comparares domínios com características completamente distintas, confundes conceitos e ideias, atribuindo-lhes acepções similares quando, na prática, devíamos estar a falar de coisas diferentes. O ar é mais puro em Seia, sim (e não num sentido metafísico, ao contrário do usual discurso referente à "elevação" de determinada prática musical; existem características químicas que traduzem essa pureza). E, por norma, o consumo de água é um aspecto essencial para a espécie humana, sim. Estamos a falar de necessidades fisiológicas fundamentais; se beberes água poluída, ou respirares ar poluído, o corpo ressente-se. Seja aqui ou no Japão. Logo, primeiro erro fundamental: comparar necessidades fisiológicas fundamentais à espécie humana a práticas ou "obras" musicais. Os Venda nunca tiveram nem Beethoven, nem Stockhausen, nem Bach, nem Marco Paulo, nem afinação temperada, nem piano-forte ou charamela, e parece que não viveram "pior" por isso. Ou "melhor". Só aí, cai logo esse equiparar de "universalismos no gosto". Se existem melhores arquitectos ou sapateiros? Tu próprio respondes: "um arquitecto foi melhor do que o outro no objectivo". Depende do objectivo, e dos valores socialmente partilhados. Se o objectivo passar por "não deixar que um prédio caia", se o propósito comum dentro da entidade colectiva "arquitectos" é que o mesmo não caia, e ainda assim o prédio cair, é porque o arquitecto correspondeu mal ao objectivo. Há um referente material, inclusive. Dentro desses valores, é um mau arquitecto. Mas qual a relação disso com a música, onde não temos esse tipo de referente material, mas apenas propagação de ondas sonoras?

Até aqui podemos deduzir o seguinte destas respostas: que existem melhores arquitectos ou melhores sapateiros, mas não se pode afirmar – por serem domínios diferentes da música – que existem melhores músicos ou músicas melhores do que outras. E, também é de referir uma espécie de apartheid sensorial, ao distinguir de forma categórica que, por exemplo, o gosto do tacto, deve ser encarado de forma diferente do gosto do ouvido ou da audição. Ou seja: é possível provar que o leite biológico é “melhor” do que um leite carregado de aditivos transgénicos, mas já não é possível demonstrar, que uma música é “melhor” do que outra. Mas Andrade prossegue:

 É que se eu estiver a viver dentro de um prédio, e ele cair, a probabilidade de eu morrer é substancial. Se eu quiser comprar um disco que já conheça do Al Jarreau, e, por algum motivo, os tipos na loja trocarem o disco por um do Júlio Iglésias, quem sabe se eu não posso até gostar mais do segundo. Estamos a falar de valores estéticos, valores esses que não são necessariamente assentes em pressupostos científicos, ao contrário da questão da queda de um edifício. Eu não gosto de Tony Carreira porque a música que ouvi durante toda a vida era outra, e porque partilho de outros valores estéticos; ainda assim, é tão música a música dele quanto a do Stockhausen, e tanto uma como a outra merecem ser estudadas, a meu ver, com base nos valores que enformam a sua produção.

Eu nunca afirmei que não se devia estudar ou analisar todas as músicas. Apenas questiono se não podemos elaborar de uma forma cientifica, uma crítica ou juízo de valor a essas músicas. Mas para Andrade, os

Valores e propósitos até me parecem ser bastante bem correspondidos, no caso do Tony. "No objectivo" (citando-te), em Portugal, é do melhor que há, dada a forte aderência de público. Sem um "objectivo", e numa dimensão meramente abstracta, "isolada", a equiparação referente ao carácter supostamente "qualitativo" do material é absurda. Como diz o Bruno Nettl (1983), esse tipo de considerações partem sempre de pressupostos ideológicos ("...for determining cultural or musical quality or value, a number of criteria appear to have been used, but in all cases they determine music that conforms to an ideal, an ideal that may be the scholar's own"); como tal, lamento, mas a ideologia posiciona-se, a meu ver, num campo oposto ao conhecimento científico.

O que acaba de dizer aqui Andrade, tem a ver com o que já abordei, ao citar Eggebrecht, na sua distinção de “música funcional” de “música abstracta”, sendo que a primeira tem uma “função” a cumprir, e, se esse objectivo for cumprido, essa música – por muito “má” que seja, tem o dom de – no caso concreto dos objectivos a que se propôe – “funcionar” e portanto, ser “boa”. Mas somente porque “cumpre” os objectivos a que se propôs. Mas continua:

O intuito do trabalho científico deve ser o de explicar, e não o de prescrever. Se tu achas que o Stockhausen é melhor do que o Tony Carreira, tudo bem. Só que... isso acontece contigo, e não com milhões de outras pessoas. A "qualidade" não é um valor intrínseco, mas atribuído. Não reside no material. Só na cabeça de quem ouve.

Concluindo: A ciência deve explicar (pedagogia) e não prescrever (crítica), e, gostos não se discutem. Ora eu penso que se há coisa que se discute são os gostos. Vejamos o que diz J. De La Bruyéresobre esta matéria:

Na arte existe um grau de perfeição do mesmo modo que existe um grau de bondade ou de maturação. Quem sabe identificá-lo e apreciá-lo tem um gosto perfeito; quem não o sabe identificar e orienta a sua preferência aquém ou além dele, tem um gosto defeituoso. O que significa que há bom gosto e mau gosto e que, portanto, a discussão sobre os gostos tem fundamento.

Fiz a seguinte pergunta ao António Tilly: “De que forma podem os etnomusicólogos provar, porque é que as suas crenças é que estão correctas e que são um resultado de um pensamento cientifico”? Eis a sua resposta:

A maior parte dos etnomusicólogos, fartaram-se de provar porque é que é necessário estudar a música como "cultura". Basta ler os mais conhecidos e obrigatórios nas cadeiras de etnomusicologia: Merriam, Blacking, Nettl, Seeger, T. Rice, Bohlman, Myers.

Aqui apetece-me perguntar: “Conhecidos” e “obrigatórios” para quem? Quem determina quem são os autores “obrigatórios”? É que, da mesma forma que para uma pessoa – segundo Tilly ou Andrade – pode “gostar” de determinada música, ou achar que certo músico é “obrigatório”, outra pode achar precisamente o contrário. Outra questão que me ocorre, é a de que existem autores que não são das cadeiras da etnomusicologia, e, pronunciam-se sobre esta e sobre matérias etnomusicológicas, por vezes, de forma mais original e com propostas inovadoras e com carácter cientifico. Depois Tilly contra-ataca contra uns ditos “anti-etnomusicólogos”, afirmando que,

Ao contrário, os ditos anti-etnomusicólogos é que não provam que "não é necessário estudar os valores culturais para se estudar a música". Mesmo o Middleton, na sua crítica à etnomusicologia, mostra desconhecer os trabalhos mais recentes, e vê ainda a etno como o estudo das músicas extra-europeias e não-eruditas (populares) europeias (a que ainda chama folclore). Aliás, como poderás ler em qualquer Enciclopédia, a Etnomusicologia tem reflectido sobremaneira na sua própria acção, sendo muitas das vezes criticada por isso.

É exactamente o meu caso: considero essa “reflexão” etnomusicológica, uma forma de olhar para o seu umbigo, e, de se submeter a uma Síndrome da pescada de rabo na boca, ou seja, levantam questões – o “porquê -, mas não dão respostas. No seguimento da sua resposta, Tilly aponta agora as “armas” para os detractores da etnomusicologia:

Mas, mais do que evidente é a estreiteza que constitui (repetidamente) o objecto da não-etnomusicologia. Estudam sempre as mesmas obras, os mesmos compositores, e não explicam (nunca explicaram) porquê. Os músicos alemães do séc. XIX recuperaram o J.S.Bach e lançaram as bases para uma "história da música" que venderam como universal. Nunca o foi… assim como a própria noção generalista europeia de Música (e dos Direitos Humanos, já agora), que a Europa (a Cultura Ocidental, como alguns lhe chamam) quer Universalizar. Quer, quer… mas, de facto, não é. Quer porque tende a prescrever... mas do ponto de vista ontológico (o que existe, de facto), e apesar da evangelização (globalização) europeia do séc. XX, não há (ainda) qualquer universalidade nas práticas musicais nem no conceito europeu de "música". Muito menos, de "música boa" (o que é boa?) e "música má" (o que é má?).

Voltamos aqui, à “boa” e “má” música. Vejamos então o que tem um musicólogo como Dahlhaus, a dizer sobre esse assunto, que para Tilly, não existe:

A boa e má música, na linguagem corrente – cujo testemunho não deve ser subvalorizado pelo historiador – não correspondem de modo algum às obras ou às criações musicais conseguidas ou malogradas. Uma canção de sucesso que, segundo as normas da indústria do espectáculo, é uma “peça bem feita”, pode ser igualmente incluída, do ponto de vista da cultura estética, na “má música”; e, inversamente, na estética, que foi marcada pela burguesia culta do século XIX, uma ópera fracassada mas sem mácula enquanto composição pertence, sem mais, à “boa música”, embora tenha errado o seu alvo.

Mais uma vez, vemos aqui a distinção entre os objectivos a que se comprometem as obras musicais, e a sua qualidade, como já tinhamos visto em Eggebrecht. Deste modo, Dahlhaus considera que:

No conceito da música boa ou má cruzam-se aspectos técnico-compositivos, estéticos, morais e sociais, e a tentativa de os considerar em separado é inevitável, se se pretender demonstrar as suas interacções. Com o juízo de que uma peça está mal composta não se visa em geral apenas uma acumulação de infracções às regras compositivas vigentes, mas um modesto nível de forma: uma melodia que se ouve como banal, uma estrutura rítmico sintáctica que se apreende como estereotipada, mas sobretudo uma falta de diferenciação nas relações entre as partes, que origina ao mesmo tempo uma carência de coerência interna, já que a integração é o correlato da diferenciação. Dificilmente se pode negar que as possibilidades de a análise estrutural demonstrar a qualidade estética estão sujeitas a limites severos, mas que tal não deveria induzir a deixar de a usar.

Vemos aqui neste comentário – creio eu – como se pode demonstrar de um ponto de vista cientifico, a dicotomia entre “boa” e “má” música. Existem “limites severos”, mas isso não deverá ser impedimento de os não utilizar, no sentido de “demonstrar a qualidade estética”. Eu consigo entender e acredito, que, alguém que goste de Tony Carreira, ao ouvi-lo, possa passar por uma experiência emocional e sensorial semelhante a alguém que gosta de Stockhausen e escuta uma obra deste. Mas há que ter em conta o contexto social a que pertence, a sua formação e educação, situação económica e financeira, a sua posição política e religiosa, etc. Segundo Bordieu, o gosto de uma pessoa por música, está intimamente ligado com o seu estrato social ebackground. Bordieu classifica o gosto em três categorias diferentes, sendo que a primeira é legitimated taste (alguém que escolhe ouvir música clássica ou erúdita). Bordieu acredita que as pessoas com este gosto são mais compatíveis socialmente com as classes dominantes. A segunda categoria é o gosto middlebrow. Este gosto é uma média entre dois extremos; o lado mais legitimado da música popular.A terceira categoria é o popular taste. O gosto popular refere-se a pessoas que gostam de certa música, consoante aquilo que a TV ou a rádio lhes dá a ouvir. Alguns chamarão a este gosto de, um gosto não-refinado. Bordieu acredita que - por exemplo -, Professores interagem melhor com crianças que possuem o gosto "legitimado" e. que o gosto está ligado às classes sociais. Assim, e de acordo com Bordieu, quanto mais alta for a classe de um estudante, mais essa pessoa tem a possibilidade de ter sucesso escolar. Vejamos agora o que tem Dahlhaus a dizer sobre esta matéria:
 
Para encetar, uma discussão racional é possivel partir da regra hermenêutica fundamental, segundo a qual um juízo sobre a qualidade – boa ou má – da música pode ser, em princípio, sensato e válido e só dentro do contexto histórico, étnico e social a que ela pertence.

Esta questão remete-nos para uma “sociologia da música”, pois esta elucida-nos sobre a questão do social na música e mostra-nos que não nos é possível entender a música fora do contexto sócio-cultural. A etnomusicologia, analisa a prática musical, mas não tem em consideração a música em si, nem nos consegue – aparentemente – elucidar sobre as qualidades desta, um juízo de valor que é importante não menosprezar, mesmo que encapotado sob permissas de uma alegada “democracia” pseudo-universal. Embora os etnomusicólogos não se revejam no papel de observadores “neutros”, alegando que é impossível manter essa neutralidade, o que me parece ser um facto, é que a ausência de julgamento crítico, transporta-nos para um mundo onde “tudo vale”, onde todos somos “iguais” porque diferentes somos no gosto. Na etnomusicologia não existe “feieza” nem “beleza”, apenas e unicamente uma “destreza” para a descrição e, esta sim, subjectiva (pois a acreditar nas palavras dos etnomusicólogos ao afirmarem que não são “neutros”, é porque optam – mesmo que inconscientemente – por adulterar, ou interferir, no objecto de estudo). Para o musicólogo Wayne Bowman,

Kant explores the distinctive characteristics and grounds for judgements of beauty from four perspectives or “moments”: their quality, their quantity, their relation, and their modality. The quality of asthetic judgements is, he says, disinterested. Their quantity is, though conceptless, universal. Their relation is purposive /while strictly speacking, purposeless). And their modality is exemplary.

Ou seja, para Kant alguém que julgue uma obra de arte, com a expectativa de que é bela, então é natural que essa expectativa se realize e, isso para Kant não é um juízo estético. Mas se se abordar essa obra de arte de forma desinteressada, teremos mais hipóteses de obter uma verdadeira e real percepção se a obra de arte é bela ou não. Esta “universalidade”, muda o acto de julgar da mera subjectividade.






Why do you necessarily have to be wrong
just because a few million people think you are?
(Frank Zappa)






#01_ James Last but not the Lizt

Não basta que milhares de pessoas digam que uma música é boa ou má, para isso se transformar numa verdade. É precisso assim, haver alguém, que nos diga – dentro de um pensamento cientifico – porque é que uma música é boa ou é má. E, é para isso, que há uma ciência – a Musicologia -, que nos faz saber – por métodos cientificos comprovados, qual a “boa” e a “má” música. A título de conclusão, direi que o “gosto” se educa, evolui e, é irreversível.

#02_ Se não houver um desvio na normalidade, não existe evolução!

Eu conheço – eu próprio passei por essa situação – pessoas que ouviam músicas e músicos, da chamada “música ligeira” e, que com uma aprendizagem, estudo e aconselhamento, deixaram de ouvir essas músicas/músicos, e, evoluiram no “gosto” para outras músicas e músicos da chamada “música de arte”. Como exemplo: alguém que sempre ouviu toda a vida Marco Paulo, António Calvário ou Tony Carreira, e que – após um processo de evolução do “gosto” -, passou a ouvir e a “gostar” de Bach, Monk ou Hendrix. Mas não conheço ninguém, que tenha começado por adorar e admirar Beethoven, Coltrane ou o canto sussurrado do Burundi, e passasse a gostar de Zé Cabra, Ágata ou Quim Barreiros. Dá que pensar, não dá, caros etnomusicólogos?

Abraço. Vítor
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Entrevistas por e-mail

Andrade, Ricardo, entrevista por e-mail, 2010
Carvalho, Mário Vieira de, entrevista por e-mail, 2010
Tilly, António, entrevista por e-mail, 2010