terça-feira, 25 de setembro de 2012

MELHOR PORQUÊ? (Parte 1)

MELHOR PORQUÊ? (Parte 1)


(Conversa entre dois etnomusicólogos: o aluno e o professor)

Aluno – Há uma coisa que não percebo muito bem nisto da etnomusicologia…
Professor – E essa coisa é o quê?
Aluno – Tem a ver com o conceito de “qualidade”. Não entendo o prurído que os etnomusicólogos têm em dizer que uma coisa é “melhor” que outra. Porquê?
Professor – Tu gostas mais de tomate ou de cenoura?
Aluno – Eu? De tomate, porquê?
Professor – É que eu gosto mais de cenoura. Ou seja: eu prefiro cenoura e tu preferes tomate. Agora pergunto: Qual é melhor? O tomate ou a cenoura?
Aluno – Para ti é a cenoura e para mim é o tomate.
Professor – Mas e para as outras pessoas? As que gostam de pepino? As que gostam de cebola? Qual é o melhor afinal?
Aluno – Cada pessoa pode gostar de um vegetal diferente, mas todos acham que o que eles gostam é melhor que o dos outros.
Professor – Não, o que as pessoas acham é que embora elas gostem de determinado vegetal, existem outras pessoas com gostos diferentes. Mas, um vegetal não é melhor que o outro só porque é o nosso preferido.
Aluno – Talvez o exemplo com alimentos não seja o mais indicado para este caso. Vamos para o campo musical. Por exemplo: Não podemos afirmar que Helmutt Lachenmann é melhor que Julio Iglésias?
Professor – Melhor em quê?
Aluno – Melhor músico.
Professor – Mas penso que não se pode comparar um com o outro: um é compositor e pianista e outro é intérprete e cantor… Já para não falar na diferença de tipologia musical entre ambos.
Aluno – Mas, mesmo tendo em conta essas diferenças todas, podemos afirmar que um é mais importante que outro, ou não? Um cria e inventa novos conceitos em música; desenvolve novas notações musicias; novos timbres. Enquanto o outro limita-se a usar de forma naíf e kitsh, o que já há muito foi inventado e usado de forma mais inteligente, pela música erudita.
Professor – Não tens sede? Eu bebia algo fresco. Uma limonada talvez?
Aluno – Eu vou preparar Professor.
(Retira-se e volta mais tarde com o refresco)
Professor – Hum… Que boa está esta limonada. É a melhor limonada que eu já bebi na vida.
Aluno – Vê? O Professor acabou de usar a palavra “melhor”! Disse que era a melhor limonada que já bebeu…
Professor – E é! Até agora só tinha bebido limonada artificial com gás. Esta é a primeira que bebo natural, espremida do limão.
Aluno – Mas Professor: eu gosto muito mais de limonada com gás! Para mim a limonada com gás é muito melhor que a natural.
Professor – Então tu gostas mais de limonada artificial e eu gosto mais da natural.
Aluno – Mas Professor: se o Professor diz que esta é a “melhor” limonada que já bebeu, porque não pode dizer que determinada música é a “melhor” que já ouviu?
Professor – “Melhor” em que sentido? As músicas são tão diferentes! Ouvir um tema de jazz, é diferente de ouvir uma ária de ópera ou uma polifonia dos pigmeus Aka. Não acho que umas sejam melhores do que outras, apenas diferentes.
Aluno – Mas Professor, e dentro de um estilo musical? Por exemplo o jazz. Não se pode dizer que um Thelonious Monk é melhor pianista do que o Teté Montoliou?
Professor – Melhor em quê? E para quem? Eu gosto muito do Monk, mas também me interessam certas composições do Teté.
Aluno – Mas o Monk é mais autêntico que o Teté.
Professor – Para ti isso é uma realidade, mas pode não o ser para outro. E o que é ser “mais autêntico”? Não é um pouco subjectivo isso?
Aluno – Pois… para os etnomusicólogos tudo é “subjectivo”… parece não haver nada “objectivo”. Não têm opinião sobre nada. Tudo é “bom” dependendo do “ponto de vista”. E têm muitas “dúvidas”. Sempre muitas dúvidas. 
Professor – E não achas que é melhor ter dúvidas, do que certezas absolutas?
Aluno – Como os musicólogos históricos?
Professor – Como “alguns” musicólogos históricos…
Aluno – Diga-me Professor: não há nada em música que ache melhor que outra?
Professor – Tantas.
Aluno – Mas depois não escreve isso. Porquê?
Professor – Que interesse pode haver, para as pessoas saberem o que eu acho melhor ou pior?
Aluno – As pesoas que o respeitam e que admiram as suas ideias, ao saberem dos seus gostos, podem sempre comparar com os delas e, se for caso disso e assim o entenderem, de livre vontade, mudarem as suas ideias. Seria até pedagógico…
Professor – Mas eu posso alertar as pessoas para aquilo que gosto, sem ter de dizer que, as minhas músicas são melhores que outras que elas ouvem.
Aluno – Mas que mal tem em mostrar o seu gosto?
Professor – E que mal tem em não o mostrar?
Aluno – Não sei… parece-me um pouco como certa dança contemporânea que, tendo achado que foi escravizada pela música durante quase toda a sua existência, resolve agora não usar música nas suas coreografias.
Professor – E em que é que isso term a ver com o gosto?
Aluno – Tem porque eu penso que os etnomusicólogos, ao se oporem às vacas sagradas e às certezas absolutas de certa musicologia, tornaram-se no seu absolutamente oposto, criando uma negação do gosto pessoal e a ausência de adjectivos caracterizadores de qualidade.
Professor – E supondo que tens razão, vês isso como algo de “negativo”?
Aluno – Negativo não… mas mete-me impressão. Mas repare Professor: eu – como etnomusicólogo – respeito toda a música. Para mim o penúltimo quarteto de cordas de Beethoven não é “melhor” do que um raga indiano. Um cantor do Burundi não é melhor que um cantor de rock. A música clássica não é melhor que a música jazz. Isso eu sei e respeito. Mas dentro de cada área, existem – quanto a mim – “estratos de qualidade” chamemos-lhe assim. De forma a percebermos e podermos até explicar porquê, a razão de por exemplo, a canção Knock knock knock on the heva´sn door do Bob Dylan, é melhor que a cover de uma banda portuguesa (que não me recordo agora o nome). Deviamos poder dizer, assim, que uma canção – ao ser a original – já tem em si um valor de “autenticidade” que não existe na outra. Mas mesmo noutros pontos – instrumentação, tímbres, ritmo, harmonia, bruítage – deviamos ter ferramentas de análise que nos permita mostrar, claramente, que algo é “melhor”, porque mais “original” e “autêntico”.
Professor – Mas não podemos usar essas “ferramentas” para “descrever” o que ouvimos e vemos, sem termos de “comparar”?
Aluno – Claro que sim. Mas eu refiro-me a casos concretos em que logo de início temos de tomar decisões como “Vou fazer um trabalho sobre Rap em Lisboa” por exemplo. Ora, quando o etnomusicólogo resolve escolher este tema, antes de se atirar a analisar o primeiro grupo que apanhe na esquina do seu bairro (aí o trabalho já poderia ser “Grupos Rap de Bairro) fazer uma pesquisa, para que a sua escolha possa ir no sentido de serem incluídos no seu trabalho, grupos representativos dessa tipologia musical, quer pela “autenticidade”, “identidade”, “originalidade”, quer pelo que representam na sociedade em que estão inseridos. Talvez aí, mude certa “moda”, de se falar de seja sobre o que for, aparentemente sem um critério de gosto.
Professor – E como procedia o etnomusicólogo para escolher esses “grupos representativos”? Pelo número de discos editados? É que ter discos editados não significa propriamente sinal de qualidade. É pelo número de concertos dados? É que nem sempre são os melhores músicos a darem mais concertos… pelo contrário. Que critério usaria o etnomusicólogo?
Aluno – Partimos do príncipio que o etnomusicólogo é uma pessoa sensível à música e com um conhecimento aprofundado desta. Logo aí, joga a “intuição” dele: uma escolha baseado no que está a ver e ouvir. Por vezes logo através de uma capa de um disco, aprecebemo-nos de muitas coisas. A estética da capa; a forma como os músicos estão vestidos; as poses ou ausência de poses; a informação sobre o disco, enfim, um sem número de coisas que nos fazem logo ver que tipo de material estamos a lidar. E se não for o caso, começar a usar pesquisa de campo: na net, ou através de pessoas (músicos, musicólogos, melómanos) que achemos nos possam dar alguma indicação pertinente. Creio que seria mais ou menos assim que teria de proceder o etnomusicólogo: com intuíção e lógica.
Professor - Mas percebes, que mesmo assim, mesmo supondo que esse etnomusicólogo fez “a melhor escolha”, irá sempre haver alguém, que acha que faria uma “melhor” escolha que a dele?
Aluno – Mas pelo menos existe a vontade de tentar mostrar o mais representativo e não, ficarmos pelo n´importe quoi, tipo: logo que a nossa argumentação seja boa, não importa que música mostramos ou analisamos.
Professor – E não achas que isso que dizes está a ser feito?
Aluno – Cada vez por menos pessoas. E deveria ser ao contrário. Deveria haver cada vez mais pessoas a fazerem trabalhos interessantes.
Professor – E como sabes tu que não há? 
Aluno – Pelo que leio e assisto. Parecem-me “titúlos” exóticos, mas com pouco recheio… Mas Professor diga-me sinceramente: não sente por vezes vontade de mostrar o seu gosto às outras pessoas?
Professor – Tu devias ter ido para musicólogo histórico…

1 comentário:

  1. Claro que o Aluno devia ser um "musicólogo histórico". Mas também crítico de música, porque ele é astuto e sensível, ao contrário da maioria dos vergonhosos que não temem opinar estupidamente. Este Aluno (só pode ser de nota VINTE), é o que precisávamos!

    AR

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