quinta-feira, 18 de outubro de 2012

SILÊNCIO

 SILÊNCIO
 
 
 
“O silêncio não existe;
viver é mantermo-nos no centro de um fluxo
que só a morte interromperá”.
(François Mauriac)


Mas afinal o que é o silêncio? O silêncio é um estado sonoro onde o receptor não acha correspondente audível que sobre ele ou sobre o meio ambiente interfira. No meio ambiente o silêncio é muitas vezes associado ao facto de não se ouvirem paisagens sonoras criadas pelos humanos. Diz-se que um ambiente está em silêncio mesmo que estejam pássaros a cantarola
r , pois eles fazem parte do ambiente natural. É quando “ouvimos” o silêncio da natureza. Não existe um silêncio absoluto, mas sim um silêncio audível.
Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001:3412), silêncio “é a ausência de barulho, de ruído”. Já no The Free Dictionary (um dicionário online) a definição de silêncio é que este é “ausência de som ou ruído ”. Pensamos que a inclusão do termo “som” é – ainda que a definição continue incorrecta – mais indicada e mais universal do que na definição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Aliás pensamos que uma vez que ruído é uma espécie de som, teria sido suficiente dizer que silêncio seria a “ausência de som”. Ora, se já definimos ruído, e se silêncio é – segundo estes dicionários - a ausência deste, então a definição de silêncio seria o oposto da definição de ruído: silêncio ≠ ruído. Mas na realidade não é assim tão simples. É que tal como na definição de ruído existem várias interpretações (físicas ou musicais) e diferentes tipos de ruído, também na noção de silêncio encontramos diversidade. Então se silêncio é ausência de barulho, de ruído, se estivermos a ouvir Bach é silêncio? Ou a música de Bach é ruído? E se estivermos a ouvir o chilrear de um rouxinol? É barulho? E, se não é, é silêncio? E duas pessoas a conversarem: é barulho, ruído ou silêncio? Ou nenhuma destas opções? Reparemos de que forma o compositor John Cage, que escreveu uma composição só de silêncio intitulada 4´33´´ e que abordaremos mais a seguir, no diz sobre o silêncio:
“a experiência sonora que eu prefiro, a todas as outras, é a experiência do silêncio. E o silêncio, em quase toda parte do mundo actual, é o tráfego. Se você ouvir Beethoven ou Mozart, você vê que é sempre a mesma coisa. Mas se você ouve o tráfego, é sempre diferente” .
É interessante observarmos em pormenor algumas subtilezas desta sua afirmação, a começar por quando ele diz que a experiência do silêncio é uma experiência sonora. Depois dá-nos como exemplo de silêncio, o tráfego, e que este, contrariamente a Beethoven e Mozart que são sempre iguais, é sempre diferente, numa alusão à aleatoriedade do tráfego, e à rigidez da escrita musical de uma partitura musical. Diz-nos ainda Cage:

“o silêncio é todo o som não intencional. Não existe silêncio absoluto. Assim, o silêncio pode incluir na perfeição sons de forte dinâmica, e cada vez mais no século XX isso acontece” .

Reparemos que, em primeiro lugar, Cage considera que o silêncio é um som, embora não intencional; que não existe silêncio absoluto, e que o silêncio pode conter sons de forte dinâmica. Já não bastava o facto de admitir que o silêncio pode conter sons, como ainda por cima podem ser sons de forte dinâmica. Mas será assim tão difícil aceitar afirmações deste teor? Vejamos: sabemos que existem os infra-sons e os ultra-sons. São sons que estão respectivamente abaixo e acima do âmbito da nossa frequência auditiva. Dessa forma, são sons e nós não os ouvimos (o nosso sistema auditivo não foi concebido para os escutarmos). A única coisa de que temos a certeza é de que não existe silêncio absoluto (excepto no vácuo e na percepção de máquinas sob condições acústicas especiais, condições essas só existentes num local que se designou de câmara anecóica e que pode ser registado em decibéis, neste caso de zero decibéis; mas mal esteja presente um ser vivo, esse silêncio absoluto deixa de existir). Foi por essa experiência que passou o compositor John Cage, constatando que, ao querer escutar o silêncio, afinal escutou dois sons e, depois de descrevê-los ao o técnico de som, ficou a saber que um dos sons (agudo) era o seu sistema nervoso e o outro (grave) era a circulação sanguínea. A partir dessa experiência Cage tinha – segundo ele – a hipótese de seguir pela estrada que todos os compositores tinham escolhido até aí (o de produzirem intencionalmente algo), ou a de ir por um outro caminho nunca percorrido, e que era o da não-intencionalidade (ele queria ouvir o silêncio e o corpo dele não o deixou, criando não-intencionalmente som). Isso levou-o então à realização da peça de silêncio com o nome de 4´33´´ , correspondentes aos minutos durante os quais o ou os intérpretes estão em silêncio sem tocarem no ou nos instrumentos e, dessa forma, os sons que se ouvem são do público e do ambiente que rodeia o espaço da realização da obra: é a não-intencionalidade no seu expoente máximo. Mas como se “escuta” uma obra como a 4´33´´? Segundo James Pritchett, existem duas formas de a audiência lidar com esta peça:

“The first is to pay attention to the acoustic quality of the ambient sound we hear during the piece. “Oh,” we may say to ourselves, “there are all kind of sounds going on in this space that I never noticed before.” We become interested in these noises and what we can detect for those four and a half minutes. This is treating the piece as an aesthetic object, like any other piece of music, only one built out of very unusual materials.” (Pritchett, 2009:174-175).
Encarar a composição 4´33´´como uma outra peça musical qualquer, embora esta seja constituída por “materiais invulgares”. Pritchett ao utilizar “materiais invulgares”, está a referir-se ao uso do silêncio como matéria-prima desta obra. Ora, já desde 1947 os concretistas usavam o ruído nas suas composições. Este também era – na altura – uma “matéria invulgar” sonora. E as pessoas – pelo menos algumas – ouvem essas peças como quaisquer outras obras musicais. Porque haveria de ser esta obra encarada de forma diferente?

“The other common way of dealing with this piece is to think what it might mean: to think about the concept of silence, whether silence even really exists, the philosophical significance of a composer making a work that contains no willful sound, the composer´s silence as a metaphor for any number of things, the political implications of putting the concert audience in this position.” (Pritchett, 2009:175).

Faz-me pensar – esta segunda forma que Pritchett nos diz sobre como a audiência pode lidar com esta obra – no urinol do Duchamp. Também este fez as pessoas questionarem “o que era a Arte”, e se aquela obra era ou não arte. Aliás, de certa forma, pode-se estabelecer uma relação entre o conceito de ready made do Duchamp que tem início com o urinol, e esta peça de Cage – 4´33´´– que, de certa forma, é um ready made sonoro: também aqui Cage nada “cria”; limita-se a usar um som ready made em tempo real pela audiência e meio ambiente onde se desenrola a interpretação. Assim, segundo Pritchett, esta composição,

“Can most usefully be seen as a tribute to the experience of silence, a remainder of its existence and its importance for all of us. But the piece is flawed, however, in that it may suggest that silence is something that can be presented to us by someone else. Ultimately, the experience of silence is not something that can be communicated from one person to another. It cannot be forced into existence externally, and we cannot willfully make it happen.” (Pritchett, 2009:177).

John Tilbury pega na afirmação de Cage de que "não existe silêncio absoluto" e vai mais longe ao dizer que “o silêncio” (seja absoluto ou não) pura e simplesmente “não existe” , o que não deixa de ser uma evolução lógica para o raciocínio de John Cage, pois se não existe "silêncio absoluto" é porque existe um "silêncio audível" e é "audível" precisamente porque contém som e assim sendo esse silêncio é "som" e não "silêncio". Para Chris Cutler o "silêncio é um som que não ouvimos ", o que nos remete novamente para a ideia já iniciada por Tilbury de que "silêncio é um som". Eddie Prevóst diz que

“Silence is the physical condition where a human being notices the absence of any sound. This can be relative. Awareness of small inconsequential sounds may also inhabit silence. In fact there is no silence except perhaps for those who are deaf. Remaining silent within a sound-proofed room, the subject will become aware of the sound of their blood circulating ”.

Já no que diz respeito ao silêncio, Schafer refere que é "ausência de som", quanto a nós, “corrigindo” a definição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, segundo o qual "silêncio é a ausência de ruído". E diz-nos que o silêncio é "negro". Da mesma forma que na óptica o branco é a soma de todas as cores, o negro é a ausência de cor (som). Para Schafer "o silêncio soa" pois "mesmo quando cai depois de um som, reverbera com o que foi esse som e essa reverberação continua até que outro som o desaloje ou ele se perca na memória" (Schafer, 1992:71). Esta última frase de Schafer parece-nos descrever na perfeição a música de Morton Feldman - cheia de "silêncios reverberados" entre as notas. Esta analogia sinestésica entre o "negro=ausência de cor=ausência de som”, leva-nos a propor que se chame de "ruído preto" ao silêncio, da mesma forma que chamamos de "ruído branco" à "presença de todas as frequências audíveis em um som complexo". E, ao fazermos isso, estamos a considerar o silêncio não um "som" como Cutler, mas um "ruído" (uma espécie de som).
Giancarlo Schiaffini diz-nos que “o silêncio é a música perfeita ”, naquilo que nos parece ser uma visão de acordo com a sabedoria pitagórica, segundo a qual o silêncio não é o vazio nem o contrário de som, mas sim que o silêncio é “Música das Esferas”. Para os pitagóricos o facto de não ouvimos essa “Música Celestial” é como um ferreiro que já não ouve o barulho da bigorna: está tão acostumado que já não lhe dá atenção. É nesse sentido, que uma tal música nos é “silenciosa”.
Murray Schafer pediu a um seu aluno que investigasse sobre a “Música das Esferas” e esta foi a definição a que este chegou:

“A Música das Esferas é uma teoria muito antiga: ela se reporta, pelo menos, até aos gregos, particularmente à escola de Pitágoras. Dizia-se que cada um dos planetas e estrelas fazia música enquanto viajava pelos céus. Pitágoras, que havia elaborado as razões entre as várias harmonias de cada corda sonante, descobriu que havia uma correspondência matemática perfeita entre eles, e, como estava interessado nos céus, notou que esses, do mesmo modo, se moviam de maneira ordenada, conjecturou que as duas coisas eram aspectos da mesma lei matemática perfeita, que governava o universo. Se fosse assim, então, obviamente os planetas e as estrelas deveriam fazer sons perfeitos ao se mover, exactamente do mesmo modo que a vibração da corda produzia harmónicos perfeitos.” (Schafer, 1992:164).

Schafer usa uma frase de Fourier em que este diz que

“o som perfeitamente puro (definido matematicamente), onda sinoidal, só existe como conceito teórico.” (Schafer, 1992:168).

Logo, para Schafer, nós só ouvimos sons “imperfeitos”, ou ainda, como seres imperfeitos que somos, não ouvimos a Música das Esferas. Conclui:

“O que estou dizendo é simplesmente que esses antigos humanistas acreditavam que um som perfeito seria percebido como um silêncio!” (Schafer, 1992:169).

Uma das características que segundo Cage diferenciava os compositores europeus dos americanos, era que estes últimos incluíam mais silêncio nos seus trabalhos. Ou seja: já não nos guiamos só pela melodia, a harmonia e o ritmo, para reconhecermos o estilo de um determinado compositor, mas agora também pelo tipo de silêncio. Aliás - para Cage - não se trata de reconhecer um compositor, mas sim toda uma escola de compositores de um determinado País. Dissemos anteriormente que, tal como o ruído, também existiam vários tipos de silêncio . Em primeiro lugar, gostávamos de constatar que, se não existe silêncio absoluto é porque existe apenas um outro tipo de silêncio a que chamaremos de silêncio audível. Se estiverem duas pessoas, no Inverno, dentro de casa, à noite, jogando xadrez e se tudo estiver calmo, podemos afirmar que estão concentrados devido ao silêncio. Mas se estivermos com os ouvidos bem atentos, veremos que esse silêncio é apenas relativo pois, com concentração, ouviremos o vento e a chuva lá fora, o crepitar da lareira e as suas respirações. Tal como no ruído - também existem variegados tipos de silêncio.
Sabíamos da importância do silêncio na música, em especial na contemporânea, mas é raro ver-se classificar ou analisar os diferentes silêncios dessas obras. Vejamos o caso do silêncio do compositor John Cage e a sua composição 4´33´´: nessa peça, os intérpretes deverão abster-se de tocar no instrumento musical durante um período de 4´33´´ dividido em três secções (Tacet I: 33``; Tacet II: 2´40´´; Tacet III: 1´20´´). Dessa forma, a experiência auditiva dos espectadores é um pouco semelhante à das duas pessoas sentadas a jogar xadrez: estes são intérpretes de uma música silenciosa, mas ouvem as suas respirações, o crepitar da lareira, o vento, a chuva ou o uivar dos cães à distância. Assim, esta composição é sempre diferente, consoante o sítio onde é executada (numa sala de concerto ou ao ar livre) e as pessoas que assistem ao evento. O que ouvimos, ao escutar o “não tocar” dos intérpretes, é tudo o resto.
Mas há outros silêncios. O silêncio - por exemplo - de um outro compositor americano: Morton Feldman. No caso de Feldman, os seus silêncios são constituídos por infindáveis reverberações, como lhes chamou John Tilbury - que é um expert da música de Feldman. Ou seja: embora não haja acção instrumental durante curtos ou longos espaços temporais, o silêncio é constituído por reverberações de acções instrumentais passadas.
Mas há mais: os silêncios de Salvatore Sciarrino ou Luigi Nono. São silêncios de certa maneira idênticos. Aliás, segundo Sciarrino, Nono terá tido um primeiro contacto com esse tipo de silêncio numa obra sua . Silêncios criados a partir de pianíssimos instrumentais ou vocais. Ou seja, o silêncio de Sciarrino e Nono é constituído de sons instrumentais ou vocais quase imperceptíveis, por vezes quase parasitas sonoros, no sentido de que são sons que surgem por serem os instrumentos tocados a fracas dinâmicas. Poderemos definir esse silêncio como sendo um silêncio sonoro subliminal. E, para ouvirmos essa música, necessitamos de uma nova escuta (Carvalho, 2007).
Mas temos que ter muito cuidado com definições absolutistas e, por vezes, redutoras, pois sintetizam apenas uma pequena essência de algo muito mais complexo. Vejamos o exemplo do silêncio “digital”. Certos compositores contemporâneos incluem o silêncio digital - criado artificialmente - nas suas peças. Assim, ao contrário do que acontecia, por exemplo, nos discos de vinil, onde o silêncio era constituído pelo ruído amplificado da agulha sulcando o vinil, agora, com a tecnologia digital, conseguiu-se criar o silêncio total (no que toca ao atrito provocado pela agulha no disco). Se em Cage o silêncio é álibi para se ouvir tudo o resto, neste caso, no silêncio digital, o que se pretende é a audição desse mesmo silêncio.
A etnomusicóloga Salwa Castelo-Branco refere que, na leitura do Alcorão, o silêncio está meticulosamente delineado; tanto ou mais que a parte escrita. Neste contexto sugeriu como exemplo, a leitura de Al-Sheikh Abdel Basit Abdel Samad.
Todas estas questões e preocupações são recentes, pouco estudadas e analisadas. Daí, no meu entender, a pertinência de as abordar, estudar e, sob um ponto de vista inovador e original, procurar a intersecção de várias ciências e saberes. E, simultaneamente, a reflexão sobre estes conceitos numa perspectiva metafísica, e que o musicólogo Mário Vieira de Carvalho designou de “Pensamentos filosófico-analíticos sobre som”, procurando assim definir o que para uma comunidade de músicos contemporâneos representa o silêncio.

“Talvez não seja legítimo então considerar o silêncio como a condição do som. O dado de partida parece ser sempre um misto de silêncio e de sons, porque, onde encontrar o silêncio absoluto?” (Nattiez, 1984:213).

Nesta frase de Nattiez, só lhe fazia uma minimal alteração: retirava a palavra “silêncio”, na frase “um misto de silêncio e de sons”. É suficiente dizer “um misto de sons”, uma vez que - como o próprio Nattiez diz de seguida: “onde encontrar o silêncio absoluto?” – o silêncio é um tipo de som. Se não existe silêncio absoluto (ou melhor: existe no vácuo e numa câmara anecóica, mas não é nunca presenciado pelo ser humano), o que existe então, é um silêncio audível, um estado sonoro. Aliás é o próprio Nattiez que de seguida afirma:

“Aquilo que pensamos ser o silêncio é, na realidade, um ruído.” (Nattiez, 1984:215).

Um silêncio ruidoso. E não é poesia. Existe mesmo. Como existe também ruído silencioso. Por exemplo o dither noise . Assim, são factos científicos que comprovam a existência destes “silêncios ruídosos” e de “ruídos silenciosos”. Para reforçar a sua ideia, Nattiez, serve-se da seguinte citação de John Cage:

“Graças ao silêncio, os ruídos entraram definitivamente na minha música” (Nattiez, 1984:213).

O que Cage quer dizer com esta frase, é que foi num estado de silêncio, que ele tomou a consciência musical dos ruídos (existentes nesse silêncio, uma vez que já se demonstrou que o silêncio é um estado audível). Depois Nattiez diz-nos que

“existem pelo menos dois tipos de silêncios, o silêncio fora da música e o silêncio na música” (Nattiez, 1984:215).

O que Nattiez nos está a querer dizer, é que existem o silêncio não-organizado e o organizado. Depois diz-nos que dentro do último grupo, o do silêncio na música, existem três categorias:

“O silêncio considerado como obra musical, em que se convida o auditor a escutar os sons que ele contém, os silêncios de expectativa da música clássica, e os silêncios considerados como valor em si na música moderna.” (Nattiez, 1984:215).

No primeiro tipo de silêncio aqui reportado por Nattiez, estariam obras como as de Erwin Schulhoff, ou John Cage (onde nenhum som é produzido); no segundo exemplo estarão todas as peças em que existam pausas entre um movimento musical e outro (e que o auditor perceba que essa pausa não faz parte da música e portanto não é escutada como musical); e no terceiro exemplo estarão todos os compositores contemporâneos que usam o silêncio como forma composicional. Diz-nos Murray Schafer:

“Não há nada tão sublime ou tão atordoante em música, como o silêncio.” (Schafer, 1992:72).

Da mesma forma que se reconhece o estilo de certos compositores pelas gramática e sintaxe do seu som, também actualmente, certos compositores, são reconhecidos pela gramática e sintaxe do seu silêncio audível. De referir que esta divisão do som organizado em três categorias me parece bastante “arriscada”, no sentido de parecer subjectiva. Por exemplo: o primeiro exemplo de silêncio (o do John Cage na sua obra 4´33´´) não poderá ser considerado como “um silêncio considerado como valor em si na música moderna”? O que é que distingue o silêncio do compositor Ligeti na sua obra Nouvelles Aventures, de 1963-65, em que no final da obra o condutor levanta a batuta e mantém-na levantada como se ainda houvesse música para ser ouvida, e o público escuta esse silêncio, e o silêncio da peça de John Cage 4´33´´de 1952 (e não de 1954 como afirma Nattiez neste seu ensaio), em que ele nos pede para escutarmos o silêncio? É a duração temporal? Não poderia o exemplo de silêncio de Cage estar inserido nesta terceira categoria, e assim só teríamos duas categorias? E porquê só três categorias? Não poderíamos incluir, por exemplo, uma categoria dedicada aos silêncios causados por erros dos intérpretes? Se um intérprete se esquecer momentaneamente da obra que está a executar e ficar em silêncio, o público vai escutar esse silêncio (se não conhecer a obra que está a ser executada) como fazendo parte da música (por exemplo no caso de certa música contemporânea ocidental), e assim temos uma nova categoria de silêncio organizado, não referido por Nattiez. E é natural que existam muitas mais categorias, pois na realidade existem diversos tipos de silêncios. Além dos já mencionados silêncios organizados e não-organizados, existem silêncios tónicos e não-tónicos. O exemplo de um silêncio não-tónico é o silêncio do campo, onde se ouvem subliminarmente sons de cigarras, vento, chuva. O exemplo de um silêncio tónico é estarmos no campo em silêncio, mas chegar-nos ao longe de forma subliminal o som de sinos da igreja, ou de cantos religiosos. Murray Schafer, diz que

“Qualquer coisa que se mova, em nosso mundo, vibra o ar. Caso ela se mova de modo a oscilar mais que dezasseis vezes por segundo, esse movimento é ouvido como som. O mundo, então, está cheio de sons.” (Schafer, 1992:124).

Mas ao afirmar que o “mundo está cheio de sons”, refere-se ao facto da inexistência de silêncio absoluto, e que o “mundo” é sonoro. Talvez por isso mesmo, Schafer diz-nos que com a

“intensidade da barragem sonora se ampliando em todas as direcções, tornou-se moda falar de silêncio. Portanto, falemos de silêncio. Nós o estamos deixando escapar.” (Schafer, 1992:128).

Refere depois, todos os

“santuários silenciosos” onde “antigamente” nos podíamos “refugiar” da “fadiga sonora”: “bosques”, “alto-mar”, numa “encosta de uma montanha coberta de neve” (…) “Estava subentendido que cada ser humano tinha o inalienável direito à tranquilidade” (…) “Até mesmo no coração das cidades havia reservatórios de quietude. As igrejas eram esses santuários, e também as bibliotecas.” (Schafer, 1992:128-129).

Repare-se que Schafer, nunca refere o termo “silêncio”, optando antes por “tranquilidade” e “quietude”. E refere-se, claro, ao intenso crescimento daquilo a que Schafer designa por ruído, mas que optaria por um intenso crescimento sónico da nossa sociedade. Não foram só os ruídos que aumentaram. Aumentaram os sons tónicos (hoje ouve-se música em todo o lado); aumentaram os infra e ultra-sons; os sons eléctricos e electrónicos; e existe de facto também, mais ruído.

“Enquanto essas tradições existiram o conceito de silêncio era real e tinha dignidade. Pensava-se no silêncio mais em termos figurativos do que físicos, pois um mundo fisicamente silencioso era, naquele tempo, tão altamente improvável como é hoje.” (Schafer, 1992:130).

Tínhamos mais “silêncio” – diz-nos Schafer -, mas nunca o silêncio “físico” absoluto, pois esse só parece existir no vácuo e no interior de uma câmara anecóica. Aliás, foi depois da sua experiência numa câmara anecóica, que Cage concluiu:

“ O silêncio não existe. Sempre está acontecendo alguma coisa que produz som”. (Schafer, 1992:130).

Cage detectou a relatividade do silêncio. Para Schafer, a partir dessa altura,

“na música tradicional, por exemplo, quando falarmos de silêncio, isso não significará silêncio absoluto ou físico, mas meramente a ausência de sons musicais tradicionais.” (Schafer, 1992:132).

Desta forma, os sons de, por exemplo, a respiração dos músicos, o virar da folha da partitura, ou as tosses da assistência, para Schafer, passam a ser sons musicais não-tradicionais, ou pelo menos, a partir de agora, e segundo ele, tomamos consciência deles e podemos, inclui-los ou não, na música que estamos a presenciar, e portanto considerá-los como musicais.

“Na realidade: silêncio – ausência de som – é negro. Na óptica, o branco é a cor que contém todas as outras. Emprestamos daí o termo “ruído branco”, a presença de todas as frequências audíveis em um som complexo. Se filtrarmos o ruído branco, eliminando progressivamente as faixas maiores de frequências mais altas e/ou mais baixas, eventualmente vamos chegar ao som puro – o som sinusoidal. Filtrando-o, também, teremos silêncio – total escuridão auditiva (…) Se é assim, silêncio é ruído?” (Schafer, 1992:71).

Schafer partilha a minha opinião de comparar o silêncio a um ruído negro (eu chamo-lhe preto, por oposição ao ruído branco). E então questiona: “Será o silêncio um ruído?”. Pois, na realidade, certo tipo de silêncio é ruído. Existe silêncio ruidoso. O silêncio de alguém num deserto, que ouve o som do mar muito subliminarmente, está numa paisagem sonora de silêncio ruidoso. Mas se alguém estiver no campo e ouvir muito subliminarmente uma banda filarmónica a tocar muito distante, esse silêncio é tónico. Por isso, nem sempre o silêncio é ruído. Silêncio pode ser constituído por todo o tipo de som. Segundo José Miguel Wisnik, no seu livro, “O Som e o Sentido”,

“Não há som sem pausa (…) O som é presença e ausência, e está, por menos que isso pareça, permeado de silêncio. Há tantos ou mais silêncios quantos sons no som (…) Mas também, de ordem reversa, há sempre som dentro do silêncio (…)” (Wisnik, 1999:18).

Para Roy Sorensen,

“Hearing silence is successful perception of an absence of sound. It is not a failure to hear sound. A deaf man cannot hear silence.” (Nudds, O’Callaghan, 2009:126).

Quando os corpos vibram, e essa vibração ondulatória é propagada num meio elástico (ar, sólido ou gasoso), produz-se som. Isto se houver seres com sistema auditivo, porque senão são apenas vibrações. O ser humano experiencia som em toda a sua vida. É impossível ao ser humano experienciar o silêncio absoluto. Desse modo, o silêncio na vida e na música é um estado audível, logo um som, um tipo de som. Para Max Diniz Cruzeiro, no seu ensaio O Silêncio , silêncio,

“Representa um estado sonoro em que o receptor não encontra correspondente audível que interfira sobre si ou ao meio ambiente.” (…) “Não existe o silêncio absoluto no meio ambiente, mas existe o silêncio audível.”

Tal como Chion, Cruzeiro fala-nos de um silêncio audível. Depois diz-nos que,

“No meio ambiente o silencio é muitas vezes referenciado ao fato de não ouvir elementos modificadores humanos sobre o meio. Um ambiente é dito em silêncio neste caso mesmo que pássaros estejam cantarolando. Pois eles compõem o ambiente natural. Ouvir o silêncio da natureza.”

Ou seja, para Cruzeiro, o silêncio é um tipo de som. Depois, e para nos dar a absoluta certeza de que não existe tal coisa como o silêncio absoluto, para o ser humano, Cruzeiro refere que

“Pode-se dizer que o silêncio também é a não activação dos sensores orgânicos que interpretam o ambiente. Indivíduos com problemas de surdez conseguem ouvir pelas habilidades vibratórias da pele humana. Portanto não dispõe da capacidade de silêncio absoluto .”

Cruzeiro indica-nos de seguida, que até existem já, geradores de silêncio:

“Algumas empresas como construtoras atualmente possuem equipamentos para a geração de silêncio. Geralmente em grandes construções o ruído é bastante significativo. Tais geradores vibracionais jogam na direção do ruído um contra-ruído capaz de neutralizar as vibrações que geram som. Nem toda a vibração gera som, mas todo som é proveniente de uma vibração inicial. Até que provem o contrário ”.

Repare-se que, da mesma forma que surgiram instrumentos musicais (sintetizadores, samplers) capazes de produzir ruído, agora os músicos têm instrumentos capazes de produzir silêncio, um silêncio audível. Silêncio audível que, “Quanto à intensidade é possível classificar em hertz um nível não audível para sua definição.”. Ou seja, somos capazes de medir o som do silêncio. O silêncio é o instante em que nos apercebemos de que conseguimos ouvir algo.

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