RUÍDO
“Há mais de vinte e cinco séculos, que o saber
ocidental tenta ver o mundo. Ainda não compreendeu que o mundo não se
olha, entende-se. Ele não se lê, escuta-se” (Attali, 2001:11).
Isto é o que pensa do mundo o filósofo Jacques Attali na sua obra seminal Bruits. “A vida é ruidosa e só a morte é silenciosa” diz-nos Attali exemplificando que
“estar vivo é presenciar o ruído do trabalho, de festa, da vida, da natureza, da revolta, da revolução, da oração, de música ou de dança
Isto é o que pensa do mundo o filósofo Jacques Attali na sua obra seminal Bruits. “A vida é ruidosa e só a morte é silenciosa” diz-nos Attali exemplificando que
“estar vivo é presenciar o ruído do trabalho, de festa, da vida, da natureza, da revolta, da revolução, da oração, de música ou de dança
” (...) “Com
o ruído nasceram a desordem e o seu contrario: a música. Com a música
nasceram o poder e o seu contrário: a subversão. O ruído é
simultaneamente um instrumento de poder e fonte de revolta” (Attali,
2001:15-16).
Tudo o que é vivo é ruído, segundo Attali. E, para que não fiquem dúvidas da importância que este dá à sua noção de ruído, vejamos o que mais nos diz sobre esta matéria este pensador:
“Nada se passa de essencial no mundo, sem que o ruído se manifeste”. (Attali, 2001:16).
Num dicionário podemos ler a seguinte definição de ruído:
“Som ou conjunto de sons desagradáveis ao ouvido e produzidos por vibrações irregulares, devidos a choque, pancada ou queda”. (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, 2001:3288),
Nesta enunciação o que nos incomoda é o termo “desagradáveis”. Desagradável para quem? E o que são sons “desagradáveis”? Por outro lado – como veremos num outro capítulo – existe ruído na música, e até música feita só com ruídos. Como podem ser desagradáveis esses sons se são música? E se, como nos diz Attali, “a vida é ruidosa”, então isso significa que a vida é desagradável?
Vamos ver que outros enunciados de ruído nos podem interessar para o nosso estudo e propósito desta tese.
Definir ruído não é tarefa fácil, porque envolve conceitos de ordem fisiológica e psicológica e não apenas de ordem física. Qualquer dicionário nos dirá que ruído é um som muito forte, definição que não nos diz muito. No tempo de Wagner conta-se que quando este tocava no seu piano em sua casa para certas condessas, algumas destas desmaiavam com a intensidade do som. Recordemos que o piano no tempo de Wagner não possuía a intensidade do som dos pianos actuais. Do ponto de vista fisiológico, ruído será todo o som que produza uma sensação auditiva desagradável, incomodativa ou perigosa. Ou que é um som não desejado. E, neste sentido, o ruído será assim. Algo sempre pessoal e subjectivo.
Do ponto de vista físico pode definir-se ruído como: “toda a vibração mecânica de um meio elástico”. Ou ainda, que ruído é um som ou conjunto de sons desagradáveis , ou perigosos, capazes de alterar o bem estar fisiológico ou psicológico das pessoas, de provocar lesões auditivas que podem levar à surdez. No senso comum, a palavra ruído significa barulho ou seja, fenómeno acústico produzido por vibrações irregulares e conjunto de sons discordantes e desarmónicos.
Entre uma definição que nos diz que ruído são “sons desagradáveis” ou outra que enuncia que ruído são “vibrações irregulares”, optamos pela segunda, pois a primeira parece-nos demasiado "subjectiva" - o que é "desagradável" para um pode não o ser para outro - e a segunda diz-nos que “todos os sons cuja vibração não seja regular são um ruído". Ora, um som de um sino é um ruído. E, sendo um ruído - porque as suas vibrações são irregulares e dessa forma é difícil estabelecer uma altura ao som -, por que é que não nos é "desagradável"? Pelo contrário: é usado até em música há milhares de anos. Mas não são "ruídos" os sons produzidos por certos instrumentos de percussão? Podemos dizer, então, que desde sempre a Música usou "ruído"?
Sobre “ruído” diz-nos o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que este é “qualquer som indistinto sem harmonia”, sendo que por “indistinto” devemos entender uma incapacidade de lhe reconhecermos uma altura definida e por “sem harmonia” o facto de estes sons (ruídos) não “obedecerem” à série dos harmónicos (como é característico em certos instrumentos musicais ou na voz humana) devido à irregularidade das suas vibrações.
"Um som que não desejamos " é a definição de ruído para Cutler. Embora prefiramos o termo "desejamos" ao termo "desagradável", achamos necessário questionar: "E quando se usa o ruído em música? Será que nesse momento esse "ruído" passa a ser um "som musical"? Ao que Cutler respondeu:
" It is always sound, but when we talk about common usage, we are in what Wittgenstein would call a language game, meaning that the context (cultural and social) is essential to the meaning. Some communities - who use 'noise' in a positive way, for instance, want to indicate an aesthetic use of material that they think does not belong in - or which actively opposes'- what they think of as 'normal' music: by which they mean organised sound made of fixed pitches and identifiable rhythms in a coherent structure. So, while they also mean sound that is unwanted (by others) it is wanted by them; in other words, they are trying to rescue or liberate 'noise' because they believe it has a meaningful and aesthetic quality. In this, they use 'noise' rather the way XVIII century romantics used the term 'ugly'. Such noise becomes musical material if is employed in a conventionally musical way; hence the 'liberation of the dissonance' (Schoenberg et al), or the extension of careful organisation (Russolo through Varèse), otherwise, in my understanding, it is unhelpful to call it musical. Thus Cage's aleatoric works are not works of music; a new term is needed for new objects intended for aesthetic listening. My soundscape pieces, for instance, are not music, neither are they simply noise, but they are framed and organised sounds intended for aesthetic listening. 'Industrial' music (as it was called in the '70s) and the forms that followed it, used the noise term in a somewhat different way; there was still the romantic connection to 'ugly' as a valid material, but more strongly a connection to a sense of disgust, the abject and annihilation. Arguably this pursues less an aesthetic use of rejected material (a bringing in) than a political or psychological use of it (stressing its out-ness). Lastly, noise is also used to indicate 'uncomfortably loud'. In this context even music can become noise. While most noise is sound in a high entropy state (as music is low entropy), very loud sounds become noise irrespective of their entropic state because of the disabling effect they have psychologically. When it's too loud to think, information becomes meaningless. But, at a physical level, as separation of self from sound recedes, self ceases to exist (or becomes all that exists, it's the same) and one becomes invulnerable. This is not an aesthetic use of sound, but something more primitive, I think" .
Música devir ruído. A música – para Cutler - pode tornar-se ruído, embora num contexto diferente do da visão de Attali. Qualquer música, tocada muito alto (intensidade), transforma-se em ruído. Cutler fala-nos também dos diferentes usos e significados da palavra ruído na língua inglesa. E refere o lado pejorativo com que é conotado muitas vezes o termo.
Na língua francesa ainda parece ser mais confusa a utilização do termo “Bruit”, consoante este é usado na música, musicologia, acústica ou no quotidiano. Michel Chion, à questão “o que é o ruído?”, responde que “le bruit est un mot” e acrescenta:
“Ce mot, em français, (…), désigne une série de notions qui n´ont pas forcement de rapport précis les unes avec les autres, et, d´autre parte, ses différentes définitions ne sont pas normalisées.” (…)« Faire du bruit» est un france synonyme de déranger, agresser. «Ne fait pas du bruit» est ce qu´on dit aux enfants français, tandis que l´anglais connaît un «be quiet» plus positif. Le bruit est donc immédiatement désigné comme une nuissance, marqué de culpabilité; le bruit est ce qu´il ne faut pas faire. Le mot «noise», lui, est réservé en anglais à tout ce qui est parasite et bruit de fond (dans les techniques de reprodution, il est ce qui qu´il faut éliminer) et à l´acception acoustique du mot bruit. “(Chion, 1998:171).
Nós, na língua portuguesa, quando incomodados por alguém estar a falar alto, usamos a expressão “está calado”, semelhante à expressão inglesa “be quiet”. E, também dizemos muitas vezes, “não façam barulho”, quando queremos, por exemplo, que crianças se portem bem e não incomodem. Sempre parece mais “correcto” utilizar o termo “barulho” em vez de “ruído”. “Barulho” parece referir-se a qualquer tipo de som (ruído ou não), que nos incomode ou que esteja num volume alto. Já utilizar a palavra “ruído” para caracterizar o som de alguém que toca no piano a sonata ao luar de Beethoven às três horas da manhã, parece-nos incorrecto. Dizer “não faças ruído” a alguém que toca suavemente piano, só porque são três horas da manhã, é uma frase errada: os sons que se escutam nessa circunstância, são sons tónicos e com forma de onda regular. São sons chamados até de “musicais”. Como e porquê os vamos chamar de “ruído”? Para Chion,
“Il n´existe pas bien sûr, comme on le sait ou plutôt comme on devrait le savoir, de distintion acoustique absolue entre ce qui est appelé bruit et ce qui est baptisé musique. En revanche, les sons sotés d´une hauteur précise susceptible d´etre repérée par l´oreille et abstraite du son – ceux qui Pierre Schaeffer, dans son Traité des objects musicaux, qualifique de sons «toniques» - semblent avoir, en raison du funcionnement de notre oreille plutôt que de leur simple spécifité physique, une faculté d´ºémerger sur tous les autres osns, des qualités sensorielles précises e fermement dessinés, n´ont pas de hauteur précise. Ils sont d´ailleurs, pour cela, majoritairement exclus ou marginalisés par une bonne partie des systèmes musicaux traditionnels, pas seulement du système occidental.” (Chion, 1998:168).
Aqui deparamo-nos mais uma vez com a oposição dos termos “ruído” e “música”, sendo que “ruídos” são sons “não-musicais” e música contém “sons musicais”, em que por “sons musicais” se entendem sons com altura definida. Ora, um som electrónico de uma lâmpada de néon, pode ser entendido como um tom, um som musical, ou seja, é possível atribuirmos uma altura definível ao som que escutamos: é um ruído tónico. E se esse som da lâmpada possuir uma forma de onda periódica – como é natural que aconteça por ser criado artificialmente – então nem era um ruído, pelo ponto de vista da acústica.
Passados quase 100 anos após a escrita do manifesto de Russolo “Arte do Ruído”, é espantoso como ainda se discute se “ruído” pode ser ou fazer parte da música.
Isto quando existe, desde 1947, a chamada música concreta, que usa objectos sonoros onde se incluem o ruído. Ou a música electrónica, que existe desde 1952, e que, além de ondas sinusoidais, também consegue criar ruídos. Porquê esta “aversão” ao ruído? Porquê toda esta confusão em volta do termo “ruído”? Chion afirma:
“Cette incohérence dans la définition commune, que l´on retrouve aussi dans les ouvrages scientifiques, est trés curieuse.” (…) “Le bruit est allors «confus», comme paraît confuse une langue qu´on n´a pas encore appris à déchiffrer, c´est-à-dire à structurer.” (Chion, 1998:171-175).
O "ruído" tal como o "silêncio", não existe para Tilbury e exactamente pela mesma razão : ambos (ruído e silêncio) são uma "espécie de som" e por isso podemos chamar-lhes simplesmente "som".
Para Murray Schafer - tal como para Cutler - ruído "é um som indesejável" (Schaeffer, 1992:68), mas diz também que
"para o homem sensível aos sons, o mundo está repleto de ruídos" (Schafer, 1992:69).
Ou seja, o mundo para Schafer está cheio de sons indesejáveis. Diz-nos também que
"o ruído é o negativo do som musical" (Schaeffer, 1992:68).
o que não deixa de ser um paradoxo para quem como ele dedicou a sua vida ao estudo de "paisagens sonoras" e que fez do ruído uma parte integrante das suas composições.
Já o “ruído” para Giancarlo Schiaffini “contém música” como “uma pedra de mármore de Carrara para o Michaelangelo” , numa interpretação semelhante à de Attali em que “tudo é ruído” e assim não seria a música que contém ruído, mas sim o contrário: o ruído seria uma pasta de que o ficheiro “música” faria parte, entre outros.
Para Eddie Prevóst “Noise is the audible evidence for some kind of physical movement” .
Recorro mais uma vez ao compositor John Cage, para observarmos como se referia ele ao ruído ainda que com algum humor. No dia em que Cage celebrava o seu sexagésimo aniversário e indo ser interpretadas várias obras suas no mesmo espaço e em simultâneo, um musicólogo - perguntou-lhe: “não tem receio que tanto som em simultâneo resulte em ruído branco?”. Ao que Cage respondeu: “sei que vai ser ruído... mas não sei a cor” .
John Cage nesta resposta mostra-nos através do humor que, para ele, era pouco importante se iria ou não existir ruído na acumulação das suas composições, uma vez que na sua perspectiva o som e/ou ruído são música.
Por outro lado é interessante notar que, aos diferentes tipos de ruído, foram dados nomes de cores, o que nos leva a supor que quem os denominou assim estabeleceu uma relação entre som e cor dizendo-nos então que um ruído branco terá, de alguma forma, uma similitude com a composição da cor “branco”. E o mesmo para as restantes cores e respectivos ruídos.
Já Luigi Russolo acreditava que a vida contemporânea era demasiado ruidosa e que os ruídos deveriam ser utilizados para música. Russolo foi um percursor na Música: a frase “sons organizados” com que define Música, é geralmente atribuída ao compositor Edgar Varèse e posteriormente a John Cage. É dele também a frase
“deliciamo-nos muito mais a combinar nos nossos pensamentos os de sons de comboios, de motores de automóveis ou de grandes multidões, do que voltarmos a ouvir a Eroica ou a Sinfonia Pastorale” (Russolo, 2009:135).
que 50 anos mais tarde seria proferida por Cage e que, provavelmente, este teria lido na tradução francesa de 1954.
Russolo disse:
“Os esplendores do Mundo foram enriquecidos com uma nova beleza - a beleza da velocidade” (Russolo, 2009:134).
antecipando a “dromologia” de Paul Virilio.
Quando dizia,
“Temos que quebrar o círculo apertado dos sons musicais puros e conquistar a infinita variedade dos sons ruidosos” (Russolo, 2009:134).
Antevia o surgimento das músicas electrónica e concreta.
Russolo viu a destruição do sistema harmónico como uma evolução e não como uma revolução. Ele alertou-nos para a necessidade de uma metódica investigação das diferentes categorias de ruído, o que viria a acontecer com o “Tratado dos Objectos Musicais” de Pierre Schaeffer. Os timbres da orquestra sinfónica - para Russolo - ofereciam um limitado espectro sonoro e “estático” - no sentido de que os timbres dos instrumentos eram fixos (havia flexibilidade na altura do som mas não no timbre) - e eram necessários novos instrumentos que permitissem ao compositor regular os harmónicos dos sons e controlar a “cor” da nota musical. Esses instrumentos aparecem em finais da década de 1950, com o surgimento dos primeiros sintetizadores. Russolo foi talvez o primeiro compositor a perceber que o ruído era somente uma forma de onda irregular - com componentes de frequências aperiódicas e que o “tom” e o “ruído” podiam ser unidos num continuum.
Marinetti e Pino Masota (ambos Futuristas como Russolo), no seu Teatro Futurista Radiofónico (1933), discutiam a possibilidade da “amplificação de sons inaudíveis” (uma ideia depois explorada por Cage) e a “amplificação da vibração de seres vivos” (concretizada posteriormente por Pierre Henry que amplificou as ondas cerebrais).
Nattiez observa que
“Pertencem à música, silêncio, sons ou ruídos que os hábitos culturais e convenções tácitas nos fazem considerar como seus.” (Nattiez, 1984:214).
Aqui só alteraria “silêncio, sons ou ruídos”, por “todos os sons”, visto que – como já foi mostrado anteriormente, dizer “silêncio, sons ou ruídos”, é como dizer “preto, cores ou vermelhos”. Sendo que onde está “sons”, substituo por “cores”; onde está “ruídos” altero por “vermelhos” (existe ruído vermelho que é um som rico em baixas frequências), e por oposição, “silêncio” seria ruído “preto” (a quase ausência de frequências do som no som e a ausência de cor na teoria das cores). De notar que o “branco” é, na teoria das cores, a soma de todas as cores (daí chamar-se de ruído “branco” a um som que contém todas as frequências do som), e que o preto é considerado como ausência de cor . O que faz com que esta minha analogia do som com a cor, ou da música com a pintura, não esteja assim tão fora do contexto. Pelo contrário. Ajuda a clarificar.
Nattiez fala-nos de diferentes usos do ruído por parte de vários compositores, e de como um som é considerado ruído em determinada época e noutra não. Conclui depois que,
“Da mesma maneira que a música é aquilo que as pessoas aceitam reconhecer como tal, o ruído é aquilo que é reconhecido como incómodo e/ou desagradável.” (Nattiez, 1984:217).
Música é – para Nattiez – o que as pessoas quiserem que seja, e o ruído é um som “incómodo” e/ou “desagradável”. Já não é mais um som de “forma de onda irregular”, mas são-lhe agora atribuídos caracteres emocionais “negativos”. Mas pergunto eu: o som de uma brisa de vento num campo de papoilas é um som “desagradável”? O som do mar numa praia deserta de uma ilha paradisíaca é “incomodativo”? Acredito que certos ruídos per se possam parecer irritantes a uns e maravilhosos a outros (o caso dos Futuristas, que veneravam e exaltavam o som dos motores dos aviões e automóveis em detrimento da Pastorale de Beethoven, ou quem achasse o acorde final da obra Tristão e Isolda de Wagner um “ruído” por lhes parecer demasiado dissonante), mas nos meus exemplos de sons da Natureza, parece-me existir uma espécie de consenso, de que esses sons, nessas circunstâncias, e para qualquer ser humano seja qual for a parte do planeta em que esteja, não são “desagradáveis” ou “incomodativos”. Mas pode haver sempre excepções, claro.
Diz Russolo:
“Chamamos som ao que é devido a uma sucessão regular e periódica de vibrações; ruído, ao que é devido a movimentos irregulares, tanto no que se refere ao tempo, como à intensidade.” (Nattiez, 1984:219).
Para esta frase ficar mais exacta, acrescentaria a palavra “tónico” logo a seguir à palavra “som”, pois há muitas espécies de sons, e um deles é precisamente o ruído, que nesta frase é colocado como sendo oposto ao som.
“O carácter de continuidade que o som tem em relação ao ruído, o qual nos aparece, pelo contrário, fragmentário e irregular, não é, no entanto, um elemento suficiente para distinguir nitidamente entre som e ruído” (Nattiez, 1984:219).
Mesmo imaginando que Nattiez se refere mais uma vez a som “tónico” quando usa o termo “som”, ele está-nos a dizer que o ruído é “fragmentário”. Ora, o ruído de uma cascata é contínuo e não “fragmentado”. Também o som do vento ou do mar. E isto só usando exemplos sonoros da Natureza. Uma máquina de barbear produz um ruído contínuo. E podíamos estar aqui até acabar esta investigação a dar exemplos de ruídos que não são “fragmentados”. Existem silêncios ruidosos - Wisnik fala-nos de um som
“continuum da natureza, que é ao mesmo tempo silêncio ruidoso” (Wisnik, 1999:35).
e ruídos silênciosos (dither noise). Para Varèse, diz-nos Nattiez,
“os instrumentos de percussão são instrumentos produtores de som e não ruído” (Nattiez, 1984:222).
Esta ideia de Varèse, vem ao encontro da minha teoria acusticológica de que certos instrumentos de percussão produzem ruídos tónicos, e daí a ligação ao som segundo Varèse. São ruído do ponto de vista acústico e físico. Mas são sons acima de tudo o resto. Assim, se são utilizados em música deviam ser considerados “sons musicais”. E, não menos importante, são criação do ser humano (os instrumentos e a manipulação sonora).
Cita de seguida um comentário de um jornalista que depois de assistir à obra Ionazation de Varèse, terá dito sobre os instrumentos de percussão usados por Varése (recordemos que entre muitos instrumentos de percussão, Varèse incluiu vários tipos de sons de sirenes):
“Empregadas por ele, são mais que produtores de som, fazem música” (Nattiez, 1984:222).
Mesmo tendo em conta o espanto que terá sido ouvir pela primeira vez (na música erudita ocidental) uma composição exclusivamente constituída de percussões, criando música, temos aqui uma ligação à minha ideia de enunciado do que é a música, pois de facto o que o jornalista nos diz é que música (naquele caso concreto da obra de Varèse) é som.
Schaeffer é citado por Nattiez afirmando que o compositor concreto deve limitar-se ao
“domínio dos objectos convenientes, aqueles que sentimos instintivamente que são propícios ao musical” (Nattiez, 1984:222).
Ora eu penso que esta frase do Schaeffer é – se assim a quisermos entender – tão naif ou ingénua nos dias de hoje como a definição de música de Rousseau. Para começar, temos a subjectividade dos termos “convenientes” e “propícios”. O que são sons “convenientes”? E “propícios”? Além de conter uma ideia limitadora e redutora, em que certos sons não “convenientes” e não “propícios” estariam excluídos do acto composicional. Uma espécie de apartheid sonoro.
Uma frase muito mais interessante e, quanto a nós, do ponto de vista da acusticologia, correcta, é a que Nattiez escolhe de Cage em que este conjectura se
“não poderemos imaginar que o ruído não será ele próprio a soma de múltiplos sons diversos confusos que se fazem ouvir simultaneamente” (Nattiez, 1984:223).
Quando o compositor Helmut Lachenmann, na sua música concreta instrumental, recria sons da música concreta, executada por instrumentos de uma orquestra clássica ocidental, é isso mesmo que faz: acumular uma frase ou um som de um instrumento, com outro e mais outro, até que, eventualmente, chega por vezes ao ruído branco. Isto consegue ele com instrumentos convencionais da música europeia, como violinos, flautas transversais, piano, trompetes, fagotes, contrabaixos. A verticalidade do ruído, em que cada ponto é um som diverso.
Diz-nos Murray Schafer:
“Comecei a pensar nas muitas confusões que rodeiam a palavra ruído. Era uma questão de dissonância, de intensidade, ou simplesmente de (des)gosto pessoal?” (Schafer, 1992:135).
Este ponto é muito importante, e nele baseio uma teoria minha, que envolve um correcto uso terminológico. Quando Schafer diz:
“O negativo do som musical é o ruído. Ruído é som indesejável. Ruído é a estática no telefone ou o desembrulhar balas do celofane durante Beethoven. (…) Ruído é qualquer som que interfere. É o destruidor do que queremos ouvir (..) “Ruído é qualquer som indesejado”. (Schafer, 1992:69-138).
Se substituirmos o termo “ruído” por “barulho”, tudo fica claro, a fazer mais sentido e mais correcto. Certo rock, free jazz, ou a noise music, usa altas intensidades de volume na sua realização. Mas mesmo alguém incomodado com o som de um tal concerto, deverá dizer: “O som está muito alto” e não “Está muito barulho”.
O termo “barulho” engloba – quanto a mim – toda uma variedade de sons, que não só ruídos. Podem ser pessoas falando muito alto e cujo “barulho” perturba as aulas; pode ser o “barulho” de uma cidade; o “barulho” numa sala de aulas. E, tudo isto, de barulho se trata e não de “ruído”, pois nesse “som” - de automóveis, motorizadas, aviões, multidões -, pode ouvir-se o som de um saxofonista tocando na rua, um rouxinol a chilrear e esses sons em particular (os do saxofone e dos pássaros), não são “ruídos”, são até sons tónicos e um deles proveniente de um instrumento musical.
Enquanto um ruído é um som cuja vibração provoca uma onda de forma irregular, barulho pode ser todo o tal som que “interfere” e que é “destruidor do que queremos ouvir”; do barulho do desembrulhar “balas” de celofane durante Beethoven; do barulho ser qualquer som indesejado. Barulho. E não ruído. Ainda que, como vimos, barulho pode conter ruído ou ruídos. Só que pode conter outros sons que não somente o ruído. Enquanto dizermos a um flautista: “Pára lá com esse ruído”, só estará correcto se ele estiver a usar novas técnicas instrumentais com as quais consiga produzir ruídos, porque de resto o que seria normal seria dizer-se: “Pára com esse barulho”, pressupondo-se que, mesmo que estivesse a produzir sons tonais (e não ruído), estaria a fazê-lo num volume elevado. “Barulho”, em vez de “ruído”, é uma solução para evitar muitos erros ou confusões, em livros de música, musicologia, acústica, filosofia. Veja-se esta confusão em Helmholtz, citado no livro de Schafer:
“A sensação de um som musical se deve ao movimento periódico do corpo sonoro; a sensação de ruído, a movimentos aperiódicos”. (Schafer, 1992:136).
Se quisermos corrigir esta frase, para ficar isenta de equívocos, escreveríamos da seguinte forma: “A sensação de um som tónico se deve ao movimento periódico do corpo sonoro; a sensação de som não-tónico, a movimentos aperiódicos”. E usaríamos o termo “som não-tónico” em vez de ruído, porque, por um lado, existem ruídos tónicos (um sino) e, por sua vez, o termo “som não-tónico” é mais abrangente e refere-se sempre a sons com “movimentos aperiódicos”, o que não é o caso de certos ruídos mecanizados.
Schafer aponta exactamente essa falha a Helmholtz, dizendo que
“segundo a definição de Helmholtz, o som da motocicleta que ouvimos não poderia ser absolutamente considerado um ruído e sim um “som musical”, pois, sendo um veículo mecânico, a motocicleta é, obrigatoriamente, periódica.” (Schafer, 1992:137).
E aqui entramos num campo que pertence mais à linguística: a semântica . Para Wisnik,
“O mundo se apresenta suficientemente espaçado (quanto mais nos aproximamos de suas textura mínimas) para estar sempre vazado de vazios, e concreto de sobra para nunca deixar de provocar barulho." (Wisnik, 1999:19).
Reparemos que Wisnik, prefere usar o termo “barulho” a “ruído”, ao referir-se ao “som” do mundo.
Também Attali, promove a ideia de que
“Vida é ruído” (Attali, 2001:11).
Tudo o que é vivo é ruído, segundo Attali. E, para que não fiquem dúvidas da importância que este dá à sua noção de ruído, vejamos o que mais nos diz sobre esta matéria este pensador:
“Nada se passa de essencial no mundo, sem que o ruído se manifeste”. (Attali, 2001:16).
Num dicionário podemos ler a seguinte definição de ruído:
“Som ou conjunto de sons desagradáveis ao ouvido e produzidos por vibrações irregulares, devidos a choque, pancada ou queda”. (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, 2001:3288),
Nesta enunciação o que nos incomoda é o termo “desagradáveis”. Desagradável para quem? E o que são sons “desagradáveis”? Por outro lado – como veremos num outro capítulo – existe ruído na música, e até música feita só com ruídos. Como podem ser desagradáveis esses sons se são música? E se, como nos diz Attali, “a vida é ruidosa”, então isso significa que a vida é desagradável?
Vamos ver que outros enunciados de ruído nos podem interessar para o nosso estudo e propósito desta tese.
Definir ruído não é tarefa fácil, porque envolve conceitos de ordem fisiológica e psicológica e não apenas de ordem física. Qualquer dicionário nos dirá que ruído é um som muito forte, definição que não nos diz muito. No tempo de Wagner conta-se que quando este tocava no seu piano em sua casa para certas condessas, algumas destas desmaiavam com a intensidade do som. Recordemos que o piano no tempo de Wagner não possuía a intensidade do som dos pianos actuais. Do ponto de vista fisiológico, ruído será todo o som que produza uma sensação auditiva desagradável, incomodativa ou perigosa. Ou que é um som não desejado. E, neste sentido, o ruído será assim. Algo sempre pessoal e subjectivo.
Do ponto de vista físico pode definir-se ruído como: “toda a vibração mecânica de um meio elástico”. Ou ainda, que ruído é um som ou conjunto de sons desagradáveis , ou perigosos, capazes de alterar o bem estar fisiológico ou psicológico das pessoas, de provocar lesões auditivas que podem levar à surdez. No senso comum, a palavra ruído significa barulho ou seja, fenómeno acústico produzido por vibrações irregulares e conjunto de sons discordantes e desarmónicos.
Entre uma definição que nos diz que ruído são “sons desagradáveis” ou outra que enuncia que ruído são “vibrações irregulares”, optamos pela segunda, pois a primeira parece-nos demasiado "subjectiva" - o que é "desagradável" para um pode não o ser para outro - e a segunda diz-nos que “todos os sons cuja vibração não seja regular são um ruído". Ora, um som de um sino é um ruído. E, sendo um ruído - porque as suas vibrações são irregulares e dessa forma é difícil estabelecer uma altura ao som -, por que é que não nos é "desagradável"? Pelo contrário: é usado até em música há milhares de anos. Mas não são "ruídos" os sons produzidos por certos instrumentos de percussão? Podemos dizer, então, que desde sempre a Música usou "ruído"?
Sobre “ruído” diz-nos o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa que este é “qualquer som indistinto sem harmonia”, sendo que por “indistinto” devemos entender uma incapacidade de lhe reconhecermos uma altura definida e por “sem harmonia” o facto de estes sons (ruídos) não “obedecerem” à série dos harmónicos (como é característico em certos instrumentos musicais ou na voz humana) devido à irregularidade das suas vibrações.
"Um som que não desejamos " é a definição de ruído para Cutler. Embora prefiramos o termo "desejamos" ao termo "desagradável", achamos necessário questionar: "E quando se usa o ruído em música? Será que nesse momento esse "ruído" passa a ser um "som musical"? Ao que Cutler respondeu:
" It is always sound, but when we talk about common usage, we are in what Wittgenstein would call a language game, meaning that the context (cultural and social) is essential to the meaning. Some communities - who use 'noise' in a positive way, for instance, want to indicate an aesthetic use of material that they think does not belong in - or which actively opposes'- what they think of as 'normal' music: by which they mean organised sound made of fixed pitches and identifiable rhythms in a coherent structure. So, while they also mean sound that is unwanted (by others) it is wanted by them; in other words, they are trying to rescue or liberate 'noise' because they believe it has a meaningful and aesthetic quality. In this, they use 'noise' rather the way XVIII century romantics used the term 'ugly'. Such noise becomes musical material if is employed in a conventionally musical way; hence the 'liberation of the dissonance' (Schoenberg et al), or the extension of careful organisation (Russolo through Varèse), otherwise, in my understanding, it is unhelpful to call it musical. Thus Cage's aleatoric works are not works of music; a new term is needed for new objects intended for aesthetic listening. My soundscape pieces, for instance, are not music, neither are they simply noise, but they are framed and organised sounds intended for aesthetic listening. 'Industrial' music (as it was called in the '70s) and the forms that followed it, used the noise term in a somewhat different way; there was still the romantic connection to 'ugly' as a valid material, but more strongly a connection to a sense of disgust, the abject and annihilation. Arguably this pursues less an aesthetic use of rejected material (a bringing in) than a political or psychological use of it (stressing its out-ness). Lastly, noise is also used to indicate 'uncomfortably loud'. In this context even music can become noise. While most noise is sound in a high entropy state (as music is low entropy), very loud sounds become noise irrespective of their entropic state because of the disabling effect they have psychologically. When it's too loud to think, information becomes meaningless. But, at a physical level, as separation of self from sound recedes, self ceases to exist (or becomes all that exists, it's the same) and one becomes invulnerable. This is not an aesthetic use of sound, but something more primitive, I think" .
Música devir ruído. A música – para Cutler - pode tornar-se ruído, embora num contexto diferente do da visão de Attali. Qualquer música, tocada muito alto (intensidade), transforma-se em ruído. Cutler fala-nos também dos diferentes usos e significados da palavra ruído na língua inglesa. E refere o lado pejorativo com que é conotado muitas vezes o termo.
Na língua francesa ainda parece ser mais confusa a utilização do termo “Bruit”, consoante este é usado na música, musicologia, acústica ou no quotidiano. Michel Chion, à questão “o que é o ruído?”, responde que “le bruit est un mot” e acrescenta:
“Ce mot, em français, (…), désigne une série de notions qui n´ont pas forcement de rapport précis les unes avec les autres, et, d´autre parte, ses différentes définitions ne sont pas normalisées.” (…)« Faire du bruit» est un france synonyme de déranger, agresser. «Ne fait pas du bruit» est ce qu´on dit aux enfants français, tandis que l´anglais connaît un «be quiet» plus positif. Le bruit est donc immédiatement désigné comme une nuissance, marqué de culpabilité; le bruit est ce qu´il ne faut pas faire. Le mot «noise», lui, est réservé en anglais à tout ce qui est parasite et bruit de fond (dans les techniques de reprodution, il est ce qui qu´il faut éliminer) et à l´acception acoustique du mot bruit. “(Chion, 1998:171).
Nós, na língua portuguesa, quando incomodados por alguém estar a falar alto, usamos a expressão “está calado”, semelhante à expressão inglesa “be quiet”. E, também dizemos muitas vezes, “não façam barulho”, quando queremos, por exemplo, que crianças se portem bem e não incomodem. Sempre parece mais “correcto” utilizar o termo “barulho” em vez de “ruído”. “Barulho” parece referir-se a qualquer tipo de som (ruído ou não), que nos incomode ou que esteja num volume alto. Já utilizar a palavra “ruído” para caracterizar o som de alguém que toca no piano a sonata ao luar de Beethoven às três horas da manhã, parece-nos incorrecto. Dizer “não faças ruído” a alguém que toca suavemente piano, só porque são três horas da manhã, é uma frase errada: os sons que se escutam nessa circunstância, são sons tónicos e com forma de onda regular. São sons chamados até de “musicais”. Como e porquê os vamos chamar de “ruído”? Para Chion,
“Il n´existe pas bien sûr, comme on le sait ou plutôt comme on devrait le savoir, de distintion acoustique absolue entre ce qui est appelé bruit et ce qui est baptisé musique. En revanche, les sons sotés d´une hauteur précise susceptible d´etre repérée par l´oreille et abstraite du son – ceux qui Pierre Schaeffer, dans son Traité des objects musicaux, qualifique de sons «toniques» - semblent avoir, en raison du funcionnement de notre oreille plutôt que de leur simple spécifité physique, une faculté d´ºémerger sur tous les autres osns, des qualités sensorielles précises e fermement dessinés, n´ont pas de hauteur précise. Ils sont d´ailleurs, pour cela, majoritairement exclus ou marginalisés par une bonne partie des systèmes musicaux traditionnels, pas seulement du système occidental.” (Chion, 1998:168).
Aqui deparamo-nos mais uma vez com a oposição dos termos “ruído” e “música”, sendo que “ruídos” são sons “não-musicais” e música contém “sons musicais”, em que por “sons musicais” se entendem sons com altura definida. Ora, um som electrónico de uma lâmpada de néon, pode ser entendido como um tom, um som musical, ou seja, é possível atribuirmos uma altura definível ao som que escutamos: é um ruído tónico. E se esse som da lâmpada possuir uma forma de onda periódica – como é natural que aconteça por ser criado artificialmente – então nem era um ruído, pelo ponto de vista da acústica.
Passados quase 100 anos após a escrita do manifesto de Russolo “Arte do Ruído”, é espantoso como ainda se discute se “ruído” pode ser ou fazer parte da música.
Isto quando existe, desde 1947, a chamada música concreta, que usa objectos sonoros onde se incluem o ruído. Ou a música electrónica, que existe desde 1952, e que, além de ondas sinusoidais, também consegue criar ruídos. Porquê esta “aversão” ao ruído? Porquê toda esta confusão em volta do termo “ruído”? Chion afirma:
“Cette incohérence dans la définition commune, que l´on retrouve aussi dans les ouvrages scientifiques, est trés curieuse.” (…) “Le bruit est allors «confus», comme paraît confuse une langue qu´on n´a pas encore appris à déchiffrer, c´est-à-dire à structurer.” (Chion, 1998:171-175).
O "ruído" tal como o "silêncio", não existe para Tilbury e exactamente pela mesma razão : ambos (ruído e silêncio) são uma "espécie de som" e por isso podemos chamar-lhes simplesmente "som".
Para Murray Schafer - tal como para Cutler - ruído "é um som indesejável" (Schaeffer, 1992:68), mas diz também que
"para o homem sensível aos sons, o mundo está repleto de ruídos" (Schafer, 1992:69).
Ou seja, o mundo para Schafer está cheio de sons indesejáveis. Diz-nos também que
"o ruído é o negativo do som musical" (Schaeffer, 1992:68).
o que não deixa de ser um paradoxo para quem como ele dedicou a sua vida ao estudo de "paisagens sonoras" e que fez do ruído uma parte integrante das suas composições.
Já o “ruído” para Giancarlo Schiaffini “contém música” como “uma pedra de mármore de Carrara para o Michaelangelo” , numa interpretação semelhante à de Attali em que “tudo é ruído” e assim não seria a música que contém ruído, mas sim o contrário: o ruído seria uma pasta de que o ficheiro “música” faria parte, entre outros.
Para Eddie Prevóst “Noise is the audible evidence for some kind of physical movement” .
Recorro mais uma vez ao compositor John Cage, para observarmos como se referia ele ao ruído ainda que com algum humor. No dia em que Cage celebrava o seu sexagésimo aniversário e indo ser interpretadas várias obras suas no mesmo espaço e em simultâneo, um musicólogo - perguntou-lhe: “não tem receio que tanto som em simultâneo resulte em ruído branco?”. Ao que Cage respondeu: “sei que vai ser ruído... mas não sei a cor” .
John Cage nesta resposta mostra-nos através do humor que, para ele, era pouco importante se iria ou não existir ruído na acumulação das suas composições, uma vez que na sua perspectiva o som e/ou ruído são música.
Por outro lado é interessante notar que, aos diferentes tipos de ruído, foram dados nomes de cores, o que nos leva a supor que quem os denominou assim estabeleceu uma relação entre som e cor dizendo-nos então que um ruído branco terá, de alguma forma, uma similitude com a composição da cor “branco”. E o mesmo para as restantes cores e respectivos ruídos.
Já Luigi Russolo acreditava que a vida contemporânea era demasiado ruidosa e que os ruídos deveriam ser utilizados para música. Russolo foi um percursor na Música: a frase “sons organizados” com que define Música, é geralmente atribuída ao compositor Edgar Varèse e posteriormente a John Cage. É dele também a frase
“deliciamo-nos muito mais a combinar nos nossos pensamentos os de sons de comboios, de motores de automóveis ou de grandes multidões, do que voltarmos a ouvir a Eroica ou a Sinfonia Pastorale” (Russolo, 2009:135).
que 50 anos mais tarde seria proferida por Cage e que, provavelmente, este teria lido na tradução francesa de 1954.
Russolo disse:
“Os esplendores do Mundo foram enriquecidos com uma nova beleza - a beleza da velocidade” (Russolo, 2009:134).
antecipando a “dromologia” de Paul Virilio.
Quando dizia,
“Temos que quebrar o círculo apertado dos sons musicais puros e conquistar a infinita variedade dos sons ruidosos” (Russolo, 2009:134).
Antevia o surgimento das músicas electrónica e concreta.
Russolo viu a destruição do sistema harmónico como uma evolução e não como uma revolução. Ele alertou-nos para a necessidade de uma metódica investigação das diferentes categorias de ruído, o que viria a acontecer com o “Tratado dos Objectos Musicais” de Pierre Schaeffer. Os timbres da orquestra sinfónica - para Russolo - ofereciam um limitado espectro sonoro e “estático” - no sentido de que os timbres dos instrumentos eram fixos (havia flexibilidade na altura do som mas não no timbre) - e eram necessários novos instrumentos que permitissem ao compositor regular os harmónicos dos sons e controlar a “cor” da nota musical. Esses instrumentos aparecem em finais da década de 1950, com o surgimento dos primeiros sintetizadores. Russolo foi talvez o primeiro compositor a perceber que o ruído era somente uma forma de onda irregular - com componentes de frequências aperiódicas e que o “tom” e o “ruído” podiam ser unidos num continuum.
Marinetti e Pino Masota (ambos Futuristas como Russolo), no seu Teatro Futurista Radiofónico (1933), discutiam a possibilidade da “amplificação de sons inaudíveis” (uma ideia depois explorada por Cage) e a “amplificação da vibração de seres vivos” (concretizada posteriormente por Pierre Henry que amplificou as ondas cerebrais).
Nattiez observa que
“Pertencem à música, silêncio, sons ou ruídos que os hábitos culturais e convenções tácitas nos fazem considerar como seus.” (Nattiez, 1984:214).
Aqui só alteraria “silêncio, sons ou ruídos”, por “todos os sons”, visto que – como já foi mostrado anteriormente, dizer “silêncio, sons ou ruídos”, é como dizer “preto, cores ou vermelhos”. Sendo que onde está “sons”, substituo por “cores”; onde está “ruídos” altero por “vermelhos” (existe ruído vermelho que é um som rico em baixas frequências), e por oposição, “silêncio” seria ruído “preto” (a quase ausência de frequências do som no som e a ausência de cor na teoria das cores). De notar que o “branco” é, na teoria das cores, a soma de todas as cores (daí chamar-se de ruído “branco” a um som que contém todas as frequências do som), e que o preto é considerado como ausência de cor . O que faz com que esta minha analogia do som com a cor, ou da música com a pintura, não esteja assim tão fora do contexto. Pelo contrário. Ajuda a clarificar.
Nattiez fala-nos de diferentes usos do ruído por parte de vários compositores, e de como um som é considerado ruído em determinada época e noutra não. Conclui depois que,
“Da mesma maneira que a música é aquilo que as pessoas aceitam reconhecer como tal, o ruído é aquilo que é reconhecido como incómodo e/ou desagradável.” (Nattiez, 1984:217).
Música é – para Nattiez – o que as pessoas quiserem que seja, e o ruído é um som “incómodo” e/ou “desagradável”. Já não é mais um som de “forma de onda irregular”, mas são-lhe agora atribuídos caracteres emocionais “negativos”. Mas pergunto eu: o som de uma brisa de vento num campo de papoilas é um som “desagradável”? O som do mar numa praia deserta de uma ilha paradisíaca é “incomodativo”? Acredito que certos ruídos per se possam parecer irritantes a uns e maravilhosos a outros (o caso dos Futuristas, que veneravam e exaltavam o som dos motores dos aviões e automóveis em detrimento da Pastorale de Beethoven, ou quem achasse o acorde final da obra Tristão e Isolda de Wagner um “ruído” por lhes parecer demasiado dissonante), mas nos meus exemplos de sons da Natureza, parece-me existir uma espécie de consenso, de que esses sons, nessas circunstâncias, e para qualquer ser humano seja qual for a parte do planeta em que esteja, não são “desagradáveis” ou “incomodativos”. Mas pode haver sempre excepções, claro.
Diz Russolo:
“Chamamos som ao que é devido a uma sucessão regular e periódica de vibrações; ruído, ao que é devido a movimentos irregulares, tanto no que se refere ao tempo, como à intensidade.” (Nattiez, 1984:219).
Para esta frase ficar mais exacta, acrescentaria a palavra “tónico” logo a seguir à palavra “som”, pois há muitas espécies de sons, e um deles é precisamente o ruído, que nesta frase é colocado como sendo oposto ao som.
“O carácter de continuidade que o som tem em relação ao ruído, o qual nos aparece, pelo contrário, fragmentário e irregular, não é, no entanto, um elemento suficiente para distinguir nitidamente entre som e ruído” (Nattiez, 1984:219).
Mesmo imaginando que Nattiez se refere mais uma vez a som “tónico” quando usa o termo “som”, ele está-nos a dizer que o ruído é “fragmentário”. Ora, o ruído de uma cascata é contínuo e não “fragmentado”. Também o som do vento ou do mar. E isto só usando exemplos sonoros da Natureza. Uma máquina de barbear produz um ruído contínuo. E podíamos estar aqui até acabar esta investigação a dar exemplos de ruídos que não são “fragmentados”. Existem silêncios ruidosos - Wisnik fala-nos de um som
“continuum da natureza, que é ao mesmo tempo silêncio ruidoso” (Wisnik, 1999:35).
e ruídos silênciosos (dither noise). Para Varèse, diz-nos Nattiez,
“os instrumentos de percussão são instrumentos produtores de som e não ruído” (Nattiez, 1984:222).
Esta ideia de Varèse, vem ao encontro da minha teoria acusticológica de que certos instrumentos de percussão produzem ruídos tónicos, e daí a ligação ao som segundo Varèse. São ruído do ponto de vista acústico e físico. Mas são sons acima de tudo o resto. Assim, se são utilizados em música deviam ser considerados “sons musicais”. E, não menos importante, são criação do ser humano (os instrumentos e a manipulação sonora).
Cita de seguida um comentário de um jornalista que depois de assistir à obra Ionazation de Varèse, terá dito sobre os instrumentos de percussão usados por Varése (recordemos que entre muitos instrumentos de percussão, Varèse incluiu vários tipos de sons de sirenes):
“Empregadas por ele, são mais que produtores de som, fazem música” (Nattiez, 1984:222).
Mesmo tendo em conta o espanto que terá sido ouvir pela primeira vez (na música erudita ocidental) uma composição exclusivamente constituída de percussões, criando música, temos aqui uma ligação à minha ideia de enunciado do que é a música, pois de facto o que o jornalista nos diz é que música (naquele caso concreto da obra de Varèse) é som.
Schaeffer é citado por Nattiez afirmando que o compositor concreto deve limitar-se ao
“domínio dos objectos convenientes, aqueles que sentimos instintivamente que são propícios ao musical” (Nattiez, 1984:222).
Ora eu penso que esta frase do Schaeffer é – se assim a quisermos entender – tão naif ou ingénua nos dias de hoje como a definição de música de Rousseau. Para começar, temos a subjectividade dos termos “convenientes” e “propícios”. O que são sons “convenientes”? E “propícios”? Além de conter uma ideia limitadora e redutora, em que certos sons não “convenientes” e não “propícios” estariam excluídos do acto composicional. Uma espécie de apartheid sonoro.
Uma frase muito mais interessante e, quanto a nós, do ponto de vista da acusticologia, correcta, é a que Nattiez escolhe de Cage em que este conjectura se
“não poderemos imaginar que o ruído não será ele próprio a soma de múltiplos sons diversos confusos que se fazem ouvir simultaneamente” (Nattiez, 1984:223).
Quando o compositor Helmut Lachenmann, na sua música concreta instrumental, recria sons da música concreta, executada por instrumentos de uma orquestra clássica ocidental, é isso mesmo que faz: acumular uma frase ou um som de um instrumento, com outro e mais outro, até que, eventualmente, chega por vezes ao ruído branco. Isto consegue ele com instrumentos convencionais da música europeia, como violinos, flautas transversais, piano, trompetes, fagotes, contrabaixos. A verticalidade do ruído, em que cada ponto é um som diverso.
Diz-nos Murray Schafer:
“Comecei a pensar nas muitas confusões que rodeiam a palavra ruído. Era uma questão de dissonância, de intensidade, ou simplesmente de (des)gosto pessoal?” (Schafer, 1992:135).
Este ponto é muito importante, e nele baseio uma teoria minha, que envolve um correcto uso terminológico. Quando Schafer diz:
“O negativo do som musical é o ruído. Ruído é som indesejável. Ruído é a estática no telefone ou o desembrulhar balas do celofane durante Beethoven. (…) Ruído é qualquer som que interfere. É o destruidor do que queremos ouvir (..) “Ruído é qualquer som indesejado”. (Schafer, 1992:69-138).
Se substituirmos o termo “ruído” por “barulho”, tudo fica claro, a fazer mais sentido e mais correcto. Certo rock, free jazz, ou a noise music, usa altas intensidades de volume na sua realização. Mas mesmo alguém incomodado com o som de um tal concerto, deverá dizer: “O som está muito alto” e não “Está muito barulho”.
O termo “barulho” engloba – quanto a mim – toda uma variedade de sons, que não só ruídos. Podem ser pessoas falando muito alto e cujo “barulho” perturba as aulas; pode ser o “barulho” de uma cidade; o “barulho” numa sala de aulas. E, tudo isto, de barulho se trata e não de “ruído”, pois nesse “som” - de automóveis, motorizadas, aviões, multidões -, pode ouvir-se o som de um saxofonista tocando na rua, um rouxinol a chilrear e esses sons em particular (os do saxofone e dos pássaros), não são “ruídos”, são até sons tónicos e um deles proveniente de um instrumento musical.
Enquanto um ruído é um som cuja vibração provoca uma onda de forma irregular, barulho pode ser todo o tal som que “interfere” e que é “destruidor do que queremos ouvir”; do barulho do desembrulhar “balas” de celofane durante Beethoven; do barulho ser qualquer som indesejado. Barulho. E não ruído. Ainda que, como vimos, barulho pode conter ruído ou ruídos. Só que pode conter outros sons que não somente o ruído. Enquanto dizermos a um flautista: “Pára lá com esse ruído”, só estará correcto se ele estiver a usar novas técnicas instrumentais com as quais consiga produzir ruídos, porque de resto o que seria normal seria dizer-se: “Pára com esse barulho”, pressupondo-se que, mesmo que estivesse a produzir sons tonais (e não ruído), estaria a fazê-lo num volume elevado. “Barulho”, em vez de “ruído”, é uma solução para evitar muitos erros ou confusões, em livros de música, musicologia, acústica, filosofia. Veja-se esta confusão em Helmholtz, citado no livro de Schafer:
“A sensação de um som musical se deve ao movimento periódico do corpo sonoro; a sensação de ruído, a movimentos aperiódicos”. (Schafer, 1992:136).
Se quisermos corrigir esta frase, para ficar isenta de equívocos, escreveríamos da seguinte forma: “A sensação de um som tónico se deve ao movimento periódico do corpo sonoro; a sensação de som não-tónico, a movimentos aperiódicos”. E usaríamos o termo “som não-tónico” em vez de ruído, porque, por um lado, existem ruídos tónicos (um sino) e, por sua vez, o termo “som não-tónico” é mais abrangente e refere-se sempre a sons com “movimentos aperiódicos”, o que não é o caso de certos ruídos mecanizados.
Schafer aponta exactamente essa falha a Helmholtz, dizendo que
“segundo a definição de Helmholtz, o som da motocicleta que ouvimos não poderia ser absolutamente considerado um ruído e sim um “som musical”, pois, sendo um veículo mecânico, a motocicleta é, obrigatoriamente, periódica.” (Schafer, 1992:137).
E aqui entramos num campo que pertence mais à linguística: a semântica . Para Wisnik,
“O mundo se apresenta suficientemente espaçado (quanto mais nos aproximamos de suas textura mínimas) para estar sempre vazado de vazios, e concreto de sobra para nunca deixar de provocar barulho." (Wisnik, 1999:19).
Reparemos que Wisnik, prefere usar o termo “barulho” a “ruído”, ao referir-se ao “som” do mundo.
Também Attali, promove a ideia de que
“Vida é ruído” (Attali, 2001:11).
Fantástico o seu texto, muito bem embasado. Colocando o seu ponto de vista de forma clara, compreensível e indubitável. Parabéns
ResponderEliminarObrigado e Abraço
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