NONO & OS FUTURISTAS
Perante tanta diversidade no que
diz respeito a este tema tão vasto que é “música & política”, a
dificuldade podia recair no que escolher como matéria para este artigo.
As várias formas como ao longo dos tempos no Ocidente a música se
relacionou com as côrtes, com os reis, com os príncipes, Beethoven e
Napoleão, as lutas políticas de Wagner, Messiaen preso num campo de
concentração, tudo isto seriam temas interessantes para esta matéria.
Mas foi óbvio desde o início que queria abordar os Futuristas italianos e
Luigi Nono: os Futuristas porque a nível musical tiveram ideias
revolucionárias e premonitórias, e Nono porque representa o exemplo
máximo no século XX de “um músico que incorpora a política dentro da
música dele” (Vieira de Carvalho, Seminário, 2009). Já Lopes Graça
separa a política da sua música. De que forma? Fácil: uma coisa é a sua
música “erudita” concebida para as salas de concerto e outra é a música
que escreve baseada em músicas populares e que dedica a grupos corais
amadores. Nesse sentido, parece-nos mais “verdadeira” e “revolucionária”
a forma como se estabelece uma relação entre a sua música e a política.
Foi Bruno Scherchen quem iniciou Luigi Nono no universo da música
concreta em Paris nos anos de 1950 no estúdio de Pierre Schaeffer. Nono
era membro do partido comunista desde 1952. Diz Nono:
“A forma de
usar a Electrónica na sua música, era para Nono uma forma de se
apropriar de uma tecnologia da classe dominante, para a concretização de
um projecto revolucionário. Em "Y entonces comprendió" (1969-70),
podemos ouvir na banda magnética a voz de Fidel Castro lendo a última
carta que Che Guevara lhe enviara. Os sons registados são
simultaneamente materiais musicais e documentos históricos” (Michelle
Agnes, 2007:2).
A obra "La fabbrica illuminatta” (1964) para
soprano e banda magnética em 4 pistas, é uma peça paradigmática do
segundo período criativo de Nono. Esta composição foi dedicada aos
operários da fábrica “Italsider” de Gênova-Cornigliano. A paisagem
sonora que forma a banda magnética, são os ruídos da maquinaria da
própria fábrica. O texto reúne diálogos dos operários da fábrica,
contratos sindicais e excertos de poemas de Cesare Pavese, reelaborados
pelo dramaturgo Giuliano Scabia.
“Podemos descobrir a ideologia
de Nono através do seu discurso musical, não só pelo elemento
“extra-musical” (os textos cantados), mas também pelo elemento
“intra-musical” (paisagens sonoras elaborados em estúdio). Por outro
lado, sua construção não é simplificada com fins pedagógicos, como na
arte oficial de propaganda socialista. Pelo contrário, dado o seu
complexo nível de elaboração, afasta-se da estética do realismo
socialista e de um teor naturalista, de simples descrição da realidade:
"éramos anti-realistas, mas procurávamos a realidade", afirma Scabia”
(Michelle Agnes, 1990:4).
Os modelos apresentados pelo compositor
são a poesia de Maiakóvski e o teatro de Meyerhold, artistas russos
engajados, mas afastados de modo claro da estética oficial do comunismo.
Às
perguntas de Sarte: "o que é escrever?", "porque escrevemos?", "para
quem se escreve?", Nono começa por responder à terceira indagação de
Sartre organizando audições e debates, juntamente com o musicólogo Luigi
Pestalozza, em fábricas e escolas. O ponto de contacto entre La
fabbrica illuminatta e seus ouvintes operários seria, justamente, a
técnica. O compositor conclui que, “pelo contacto com avançados meios de
produção, os trabalhadores da indústria pertencem à vanguarda
tecnológica”. Outras questões ajudariam ainda, segundo o compositor, a
fruição da obra pela classe operária, como o facto de “os trabalhadores
não questionarem o potencial musical dos ruídos, como o faria o público
habitual das salas de concerto”. Relatos de operários mostram que a
escuta da obra lhes trouxe “consciência do estado de alienação em que se
encontram nas fábricas e da violência dos sons aos quais se encontram
submetidos”.
“Em La fabbrica illuminatta ouvimos uma espécie de
teatro musical, com "personagens" reconhecíveis: a massa explorada e
desesperada, uma voz individual que vislumbra serenamente no futuro a
esperança e as vozes femininas. Acrescentar a tensão nascida do conflito
entre o elemento mecânico e o humano” (Agnes Magalhães, 2007:6).
A
peça foi várias vezes executada em fábricas e escolas, lugares
desprovidos de palcos e cortinas, ou seja, de separação entre ouvinte e o
intérprete. Havia em Nono uma intenção de atenuar a oposição entre
ouvintes e executantes quando grava os sons da siderúrgica, incluindo-os
na sua obra e executando-a em fábricas. Para Nono o ideal formal numa
obra como esta realiza-se quando "a substância do texto se torna
musical". O sentido da arte, para Nono, passa pela
"tomada de consciência, luta, provocação e participação" (Nono, 1993:252).
O
movimento futurista constituído por um grupo de artistas dos quais se
destacam Boccioni, Carrá, Russolo e Severini, transferem para a criação
artística, os ideais de Marinetti. Os futuristas representam através da
arte o desenvolvimento tecnológico do início do século XX,
desmistificando o conceito de beleza assim como o tipo de materiais
utilizados na criação artística. Influenciados pelo filósofo francês
Henri–Louis Bergson, a arte é para os futuristas uma representação
dinâmica da realidade. A 20 de fevereiro de 1909, Marinetti publica na
primeira página do jornal Le Figaro o seu manifesto futurista que teve
repercussões decisivas no desenvolvimento da arte moderna do século XX.
Continha uma exaltação agressiva de destruição de tudo aquilo que
perpetuava as tradições do passado, tal como bibliotecas, livrarias e
museus. O manifesto de Marinetti confere à velocidade um “valor
plástico”. Este movimento estaria mais tarde profundamente envolvido com
o fascismo, no que resultou ser desde essa data alvo de grande
polémica. Podemos afirmar que na cultura do século XX o futurismo pode
ser usado para mostrar a relação entre arte e o poder, estética e
política, ou seja, o nascimento da estética moderna. Em 1910 Marinetti
encontra-se com os três pintores, Carrà, Boccioni e Russolo e nesse
mesmo dia o futurismo deixa de ser um manifesto literário, para incluir a
pintura (e mais tarde outras artes como a escultura, a arquitectura, o
cinema, a fotografia, a música; e manifestos sobre política, moda, sexo,
direitos da mulher, etc.). É nesta altura também que Marinetti inícia
uma série de serata (espécie de "happenings") com performances de
diversos tipos: leitura de poemas, música, teatro, dança, cinema,
fotografia), antecipando a performance arte. Em 1911 Marinetti compila
uma série de textos e manifestos e edita-os em língua francesa numa obra
intitulada "O Futurismo" - de referir que era suficientemente rico para
ser o próprio mecenas do movimento artístico e dos artistas envolvidos.
Em 1912 dá-se a primeira mostra de pintura futurista em Paris. Depois
do sucesso dos pintores futuristas, Marinetti dedica-se de novo à
literatura e publica o manifesto técnico da literatura futurista, que
alguns críticos consideram uma marca na estética moderna.
Russolo,
que em 1913 tinha trocado a pintura pela música pública, the art of
noise, propõe a abolição dos sons tónicos e que a música passe a
abranger todo um mundo de novos sons. Acreditava que a vida
contemporânea era demasiado ruidosa e que os ruídos deveriam ser
utilizados para música. Russolo foi um percursor, o conceito “sons
organizados” com que define Música, é geralmente atribuído ao compositor
Edgar Varèse. É dele a afirmação “deliciamo-nos muito mais a combinar
nos nossos pensamentos os sons de comboios, de motores de automóveis ou
de grandes multidões, do que ao voltarmos a ouvir a Eroica ou a Sinfonia
Pastorale”, afirmação que 50 anos mais tarde seria proferida por Cage.
“Os esplendores do Mundo foram enriquecidos com uma nova beleza - a
beleza da velocidade”, diz Russolo antecipando a “dromologia” de Paul
Virilio. “Temos que quebrar o círculo apertado dos sons musicais puros e
conquistar a infinita variedade dos sons ruidosos” antevendo o
surgimento das músicas electrónica e concreta. Russolo viu a destruição
do sistema harmónico como uma evolução e não como uma revolução. Alertou
para a necessidade de uma metódica investigação das diferentes
categorias de ruído, o que viria a acontecer com o “Tratado dos Objectos
Sonoros” de Pierre Schaeffer. Os tímbres da orquestra sinfónica - para
Russolo - ofereciam um limitado espectro sonoro e “estático”, no
sentido de que os tímbres dos instrumentos eram fixos (havia
flexibilidade na altura do som mas não no tímbre) - e que eram
necessários novos instrumentos que permitissem ao compositor regular os
harmónicos dos sons e controlar a “cor” da nota musical. Esses
instrumentos aparecem em finais da década de 1950, com o surgimento dos
primeiros sintetizadores. Russolo foi talvez o primeiro compositor a
perceber que o ruído era somente uma forma de onda irregular - com
componentes de frequências aperiódicas e que o “tom” e o “ruído” podiam
ser unidos num continuum.
Em 1914 Antonio Sant´Elia publica o
manifesto de arquitectura futurista no qual propunha que todas as
gerações reconstruissem as suas cidades. Dizia que as nossas casas
durariam menos que nós. A 15 de setembro de 1914 os futuristas
assistindo a uma ópera de Puccini gritaram "Abaixo a Àustria" e
queimaram uma bandeira austríaca. Em meados de 1915 alguns futuristas
morrem durante a guerra: Boccioni com 32 anos; Antonio Sant´Elia com 28
anos. Marinetti sofre ferimentos com a explosão de uma granada. O final
da guerra é um ponto de viragem para o movimento futurista: Boccioni e
Sant´Elia estavam mortos. Carrà e Severini abandonam o movimento. O
mesmo para o crítico Soffici e o poeta Palazzeschi. Por outro lado
Marinetti perdia o interesse nas artes e antecipando o final da guerra
publica em Fevereiro de 1918 o manifesto do partido futurista italiano.
Em 1919 Marinetti visita Mussolini no seu jornal e diz que este não tem
uma grande mente e não entende a necessidade da guerra. O fascismo nasce
formalmente em 23 de março de 1919. Marinetti estava presente e foi
convidado a participar no comité central. Marinetti, Mussolini e Vecchi
entre outros são presos. Mussolini é imediatamente libertado, mais tarde
será Marinetti, que enquanto esteve preso escreveu “Beyond comunism”.
Em 1920 na segunda convenção do partido fascista, as ideias de Marinetti
não foram muito bem recebidas e foram contestadas por Mussolini.
Marinetti é de novo reeleito para o comité central mas quatro dias
depois pede a demissão. Este acto marca o fim da sua participação activa
na política. Em Setembro de 1920 afastado da política, Marinetti
descobre o "tactilismo" e vai em 1921 apresentar esse novo conceito a
Paris, onde é recebido com "o futurismo morreu" e de quê?... pelo DADA
de Tristan Zara e Francis Picabia. Em 1923 publica o império italiano e
dedica-o a Mussolini. Marinetti tinha abandonado a sua actividade
política mas não a política. Em 1924, amigos que o visitavam diziam que
Marinetti preferia então devotar as suas energias a sua mulher. Mas é
precisamente em 1924 no seu manifesto futurismo e fascismo que refere as
diferenças que os separam dos fascistas. Durante os anos de 1925 e
1926, assiste-se ao fascismo a governar: censura, criminosos políticos.
Marinetti é considerado "anti-fascista". 1929: Mussolini tem a opinião
de que se deve “tratar bem os intelectuais” e de preferência
"comprá-los". Nesta data Mussolini inaugura a Academia Royal Italiana e
Marinetti é escolhido como membro inaugural (ele que sempre tinha sido
contra as Academias e Instituições). Para Gobetti é Marinetti que abre o
caminho a Mussolini e foi Marinetti quem treinou a elite que viria mais
tarde a ocupar cargos ministeriais: Carli, Settimelli, Bottai, Bolzon.
Durante o período de cerca de dez anos que mediou entre 1932 e 1942 os
futuristas tiveram sempre uma ou mais salas independentes de exibição
nas bienais de Veneza. Marinetti pedia sempre mais enquanto outros
acusavam os futuristas de terem sempre mais do que os outros. Em 1937
Hitler pronuncia-se contra a degeneração na arte e dá como exemplos
negativos o cubismo o dadaismo e o futurismo. Em 1940 Marinetti fica
doente e em 1944 resolve ir viver perto da Suiça. Em 1944 visita pela
última vez Mussolini. Marinetti morre em 1944 e Mussolini em 1945.
Conclusão
Interessou-me
esta abordagem pelo Futurismo, não tanto pela sua ligação maior ou
menor com o movimento Fascista, (que podemos analisar através de cartas,
manifestos, textos diversos), mas pela possibilidade de esse facto (o
da sua ligação com esse movimento) ter influenciado uma alegada
tentativa de desvalorização ou escondimento de um dos movimentos
artísticos mais importantes do início do século XX.
Ou ainda, pela
possibilidade contrária, de os Futuristas afinal sempre terem tido
grande projecção mediática (e numa fase final até ajuda do Estado
tiveram já que tinham sempre uma ou mais salas de exibição nas Bienais
de Veneza entre 1932-1942), devido a essa ligação.
A minha visão dos
acontecimentos é a de que contrariamente a outros movimentos artísticos
(cubismo nas artes plásticas ou impressionismo na música), estes - os
Futuristas - não tiveram artistas de calibre genial para meterem em
prática as suas ideias revolucionárias. De facto, só mais tarde,
artistas sem qualquer conotação com o movimento, vieram a concretizá-las
com obras de importância histórica: Ionization de Varése; a música
concreta de Pierre Schaeffer; a música electrónica; novos instrumentos
musicais: os sintetizadores e os samplers; novos sistemas de notação
(pictográfica, textual).
Já em Nono - figura emblemática do músico
político do século XX - interessou-me mais a forma como este encarava a
política dentro da música, ao contrário - por exemplo - de um Lopes
Graça que dividia a dois o seu trabalho composicional: para as Massas e
para Concerto.
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