MÚSICA & POLÍTICA
A definição de definição tal como nos
surge no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das
Ciências de Lisboa, Verbo 2002, é a de acção de enunciar, de
caracterizar os atributos essenciais de um ser ou uma coisa. Ora essa
acção de enunciar pode não ser definitiva, ou seja, pode não reunir as
condições necessárias para que não a venhamos a alterar ou até a
anulemos. As definições não são imutáveis. A inexistência de uma
definição única em relação a um mesmo termo, mas sim ao invés, uma
multiplicidade de definições que abordam de diferentes formas o mesmo
assunto, leva-nos a supor que umas em relação a outras, podem ser
melhores, mais complexas, mais extensas, mais incompletas, mais
poéticas, mais científicas; há definições que vão variando conforme as
épocas ou as diferentes culturas de diferentes civilizações.
Como
então definir “música”? E como caracterizar os atributos essenciais de
“política”? Estes dois termos, (musiké e politiké), surgem na nossa
sociedade ocidental na Antiga Grécia. Mas sempre houve música e política
"avant le mot". Tanto a música como a política não são exclusivas da
sociedade ocidental e há, portanto, tantas histórias da música e da
política quanto há culturas e espaços no mundo e todas as suas vertentes
têm desdobramentos e subdivisões. Para Aristóteles “O homem é um animal
político”, logo, desde que o ser humano existe, existirá política. Já a
existência de música remonta à pré-história (para muitos musicólogos o
canto terá mesmo precedido a fala) e podemos observar na arte rupestre
das cavernas uma ideia desse desenvolvimento nas figuras que parecem
cantar, dançar ou tocar instrumentos. Fragmentos do que parecem ser
instrumentos musicais oferecem novas pistas para completar esse cenário.
Considerada uma prática cultural e humana, actualmente não se conhece
nenhuma civilização ou agrupamento que não possua manifestações musicais
próprias. Embora nem sempre seja feita com esse objectivo, a música
pode ser considerada como uma forma de arte, considerada por muitos como
sua principal função.
Em relação à definição de “política” não
encontrei, talvez por não ser um entendido em política, qualquer
problema em aceitar o que me propunham os diferentes dicionários:
“A palavra política denomina arte ou ciência da organização, direcção e administração de nações ou Estados”.
A
origem do termo remonta aos tempos em que os gregos estavam organizados
em cidades-estado chamadas "polis", da qual derivaram palavras como
"politiké" (política em geral) e "politikós" (dos cidadãos, pertencente
aos cidadãos), que se estenderam ao latim "politicus" e chegaram às
línguas européias modernas através do francês "politique" que, já em
1265, era definida nesse idioma como "ciência do governo dos Estados".
Já definir música não é algo fácil de concretizar pois apesar de ser
intuitivamente percebida por qualquer humano, é-nos impossível encontrar
um conceito que contenha todos os significados dessa praxis. A música
contém e manipula o som e organiza-o no tempo. Talvez esse seja o motivo
que leva a música a estar sempre fugindo a qualquer definição, pois ao
fazê-lo, a música altera-se, evolui. E esse jogo do tempo é
simultaneamente físico e emocional, real e virtual. Ao longo da sua
história a Música esteve ligada a diversos actos sociais e até a rituais
sagrados; foi usada como suporte pelas classes dominantes:
“Ainda
quando ao serviço de tal ou tal corte ou senhor feudal, satisfazendo
encomendas mais ou menos padronizadas para cerimónias ou funções
específicas (no teatro, na igreja ou no quotidiano senhoriais) e
submentendo-se aí estritamente aos ditames da esfera pública
representativa personificada na vontade do príncipe, os compositores
começam a sentir as novas solicitações que lhes chegam da esfera pública
burguesa, expressas através da intensa interacção sócio-comunicativa
que se estabelece por via da massa de música impressa, livros,
recensões, crónicas e eventos musicais” (Vieira de Carvalho, 2007:21).
“Música“ é, para o Diccionário da Língua Portuguesa Contemporânea, a
“Arte de conjugar os sons”. Mas depois, continua dizendo que esta
“conjugação” deve ser feita de “forma melodiosa” - e aqui já deixa de
“fora” uma enorme quantidade de música que nem sequer tem “melodia”,
sendo unicamente rítmica e realizada em instrumentos sem altura
definida, como toda uma série de tipologias musicais, nomeadamente a
música electrónica, concreta ou acusmática (para citar só algumas), em
que por vezes, é totalmente ignorado o aspecto “melódico” de determinada
composição. E, o enunciado prossegue dizendo que esta “conjugação de
sons” deve estar de “acordo com determinadas regras”, o que também é
redutor, pois existem estilos musicais e obras que são totalmente
alheias a quaisquer regras, como o caso da música intuitiva, da música
improvisada e de certa música aleatória. Para terminar é de referir que
este enunciado ainda nos diz que a música é capaz de “exprimir ou
despertar emoções”, com o que estou totalmente de acordo, e que é capaz
de “evocar certas realidades” e aqui penso que faltaria acrescentar “e
certas abstracções”, o que é, para mim, um atributo bem mais importante
da Música.
No Dicionário Online de Português, encontramos a seguinte
definição de “música”: “Arte de combinar sons”. Pode-se pensar que esta
definição ganharia com a inclusão de “e silêncios”, mas se
considerarmos que o silêncio é um “som”, então dispensa-se bem esse
“pleonasmo” e aceitamos a definição como sintetizada e correcta, ainda
que incompleta (a leitura do Alcorão é uma arte de combinar os sons e os
silêncios e não é música).
Questionado sobre o que é a música, John Tilbury diz-nos que
"Música é feita pelo e para o homem, usando os sons que precisam e deixando o resto de fora" .
Para Chris Cutler
"Música é uma linguagem inter-pessoal que produz um efeito abstracto" .
Já para Eddie Prevóst
“Music
is the human production of sounds that are beyond the practical
activity of survival i.e. finding food and shelter. Music has become a
cultural instrument that serves to help humankind explain the world to
themselves. The origins of music is embedded within the sounds
perceived, copied and abstracted from the observable universe. It
probably developed as an aid for ritual and religion. In this respect,
it should be no surprise that a modern industrial society begins to
adapt the sounds of industry and use them to explain, reveal and perhaps
even celebrate (or express regret!) about the new forms of life
experiences emerging with in industrial culture” .
Pode-se
constatar que a música consiste numa combinação de sons e de silêncios,
numa sequência simultânea ou em sequências sucessivas e simultâneas que
se desenvolvem ao longo do tempo. Assim, a música, contém toda uma
mescla de elementos sonoros destinados a serem percebidos pela audição.
Incluiremos aqui variações nas características do som (altura, duração,
intensidade e timbre) que podem surgir sequencialmente (ritmo e melodia)
ou simultaneamente (harmonia). Ritmo, melodia e harmonia são
interpretados aqui tendo em conta a sua forma de organização temporal,
pois a música dos nossos dias pode conter intencionalmente melodias ou
harmonias ruidosas (ruídos ou sons não-convencionais) e arritmias
(ausência de ritmo formal ou desvios ritmicos). E é aqui que podem
surgir controvérsias. As questões que surgem desta simples observação
resultam em diferentes respostas, quando encaradas do ponto de vista do
criador, do executante, do historiador, do filósofo, do antropólogo, do
linguista, do poeta, do musicólogo ou simplesmente do amador. E as
questões são muitas: “toda a combinação de sons e silêncios é música?”;
“a música é sempre arte?” ou “a música existe antes de ser ouvida?” e “o
que faz com que a música seja música é algum aspecto objectivo ou ela é
uma construção da consciência e da percepção?”.
Nos últimos
tempos tenho tentado desenvolver uma definição de música, numa concepção
formal que o Professor Mário Vieira de Carvalho sugeriu como
“pensamento filosófico analítico” e que actualmente se sintetisa na
seguinte fórmula:
M=S ⊃ _[Sorg ∧∨ S~org ∧∨ St ∧∨ S~t ∧∨ (Sl ∧∨ R) ⇔ P] + SH
em
que, Música é Som; e nesse som estão contidos o som organizado e
não-organizado; e/ou som tónico e som não-tónico; e/ou silêncio e Ruído,
sendo que estes dependem da Perspectiva; e todo este Som é produzido
pelo Ser Humano.
Se tanto a política quanto a música parecem remontar
ao surgimento da Humanidade, também é de supor que uma relação entre
estas duas actividades tenha também desde logo existido. Exemplo disso é
a história inícial deste artigo, do Imperador Shun e da sua forma de
governar o seu reinado através dos sons e da música. Na nossa sociedade
ocidental, essa relação dá-se desde a criação dos próprios termos na
Antiga Grécia. Assim, “o animal político” de Aristóteles e “o animal
musical”, desde sempre interagiram em apertados laços de relacionamento:
para o bem e para o mal. Aristóteles prevenia que "pelo ritmo e pela
melodia nasce uma grande variedade de sentimentos" e que "a música pode
ajudar na formação do carácter" e que "se pode distinguir os géneros
musicais pela sua repercussão sobre o carácter”. Um estilo musical, por
exemplo, pode levar à melancolia, outro sugerir o desânimo ou o domínio
de si mesmo, o entusiasmo ou a alegria ou alguma outra disposição.
Platão é ainda mais conciso. No diálogo A República, avisa que a música
forma ou deforma os caracteres de modo tanto mais profundo e perigoso
quanto mais inadvertido. Grande parte das pessoas não entende que a
música tem o poder de alterar o coração dos seres humanos, e que assim,
molda a sua mentalidade. Mudando as mentalidades, a música acaba por
modificar os costumes, o que faz com que se mudem as leis e as próprias
instituições. Por isto dizia Platão que é possível conquistar ou
revolucionar uma cidade pela alteração de sua música:
"Toda
inovação musical é prenhe de perigos para a cidade inteira"... "Não se
pode alterar os modos musicais sem alterar, ao mesmo tempo, as leis
fundamentais do Estado" (Platão, República, Livro III).
Segundo
Platão, a educação musical é a coisa mais poderosa, porque incute na
alma da criança, desde a infância, o amor à beleza e à virtude. Uma
pessoa com uma culta educação musical, teria mais facilidade em entender
a beleza e a harmonia do mundo. A música seria assim criadora de
estados de “alma”, os quais faziam nascer idéias correlatas em nossas
mentes.
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