quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O QUE É A MÚSICA?

O QUE É A MÚSICA?


 
...Ao longo da sua história a Música esteve ligada a diversos actos, como rituais sagrados; foi usada como suporte pelas classes dominantes; ou simplesmente usada como uma forma de arte popular. Hoje, no vasto labirinto em que se cruzaram as múltiplas tendências da vida musical a partir dos anos 1940, estamos rodeados de música: música nas lojas ou grandes centros comerciais, música para conduzirmos, música nos elevadores, música para adormecermos, comer, conversar ou fazer a
mor. A rádio e a TV inundam-nos de música gastronómica, pop/ rock; em menor doses, jazz, ópera, clássica, ou, raramente, música electrónica, concreta, improvisada, serial, etnográfica, minimal.
Assim, o músico de hoje tem ao seu dispor, toda uma multiplicidade de formas musicais e de diferentes civilizações para poder desenvolver o seu trabalho.
Para vermos a real importância que a música tem nas nossas vidas – se é que isso é ainda necessário – tomemos como exemplo uma história passada na Antiga China . Conta-se que o Imperador Shun, de forma a controlar o seu reino e verificar que tudo estava em ordem, todos os segundos meses de cada ano, fazia uma viagem pelo seu reinado. No entanto, não o fazia observando os livros da economia das suas províncias, nem tão pouco vendo a forma de viver das suas populações. Também não interrogava os seus oficiais, nem queria saber o que pensavam os seus súbditos. Ele não utilizava nenhum desses métodos, pois na antiga China havia um método muito mais exacto, revelador e científico para se inteirar do estado do seu reino. De acordo com o antigo texto chinês Shu King, o Imperador ia através dos seus vastos territórios e testava e escutava os exactos tons das suas notas musicais. Regressado ao seu palácio e querendo monitorizar a eficiência da sua governação, não pedia conselhos aos políticos, nem revia a economia ou queria saber do estado da opinião popular (embora por vezes recorresse a esses métodos), antes queria, acima disto tudo, ouvir e testar as cinco notas da antiga escala musical chinesa. Ele pedia a oito músicos que tocavam os oito tipos diferentes de instrumentos chineses e escutava-os interpretando canções populares, bem como composições da corte, e observava se toda essa música estava em perfeita correspondência com as cinco notas. Se o Imperador Shun, nas suas viagens através do seu reino, descobrisse que os instrumentos dos seus diferentes territórios estavam todos com diferentes afinações entre eles, então ele poderia concluir que os próprios territórios em si poderiam começar a divergir entre si, perder a sua unidade e poderem mesmo entrar em conflitos, a menos que a afinação fosse imediatamente corrigida e tornada uniforme em todos os lugares. Ou se a música que ele ouvisse nos diferentes locais lhe parecesse vulgar e imoral, então ele poderia esperar que a imoralidade varresse a nação, a menos que algo fosse feito no sentido de corrigir essa mesma música.
Tal era a importância que na Antiga China era dada à música.
Definir música não é algo fácil de concretizar, pois apesar de ser intuitivamente apercebida por qualquer humano, é-nos impossível encontrar um conceito que contenha todos os significados dessa praxis. Vejamos como o cientista Steven Pinker define música, no seu livro de 1997, intitulado How the Mind Works:

“Music is auditory cheesecake, an exquisite confection crafted to tickle the sensitive spots of at least six of our mental faculties” ( Ball, 2010:3).

Pinker desafia todos aqueles que acreditam na importância da música (e aqui por música referimo-nos à intenção de produzir som, organizado, e visto pelas culturas onde se realiza como um acto musical, independentemente desse povo ter ou não ter o termo música na sua língua, ou sequer existir entre eles o conceito de música) na vida evolucionária do ser humano, dizendo:

“Compared with language, vision, social reasoning, and phisical know-how, music could vanish from our species and the rest of our lifestyle would be virtually unchanged. Music appears to be a pure pleasure technology, a cocktail of recreational drugs that we ingest through the ear to stimulate a mass of pleasure circuits at once” (Ball, 2010:3).

Tão pouca importância para uma coisa que hoje nos parece não podermos viver sem ela. Philip Ball diz-nos que esta frase de Pinker foi interpretada,

“As a chalange to prove that music has a fundamental evolutionary value, that it has somehow helped us to survive as a species, that we are genetically predisposed to be music-makers and music-lovers” (Ball, 2 010:3).

E se Pinker tem razão, mesmo assim, diz-nos Ball,

“you could not eliminate it from our cultures without changing our brains” (Ball, 2 010:5).

E porquê? Segundo Ball, porque

“music is an inevitable product of human intelligence, regardless of whether or not that arrives as a genetic inheritance. The human mind quite naturally pocesses the mental apparatus for musicality, and it will make use of these tools whether we conscously will it or not. Music is something we as species do by choice – it is ingrained in our auditory, cognitive and motor functions, and is implicit in the way we construct our sonic landscape” (Ball, 2010:5).

Segundo Ball, música é

“gymnasium for the mind”. No other activity seems to use so many parts of the brain at once, nor to promote their integration (the tiresome, cod-psychological classification of people as ´left brain` or ´right brain`is demolished where music is concerned).” (Ball, 2010:7-8).

Para o musicólogo Ian Cross,

“Music can be defined as those temporally patterned human activities, individual and social, that involve the prodution and perception of sound and have no evident and immediate efficacy or fixed consensual reference.” (Ball, 20109).

A música contém e manipula o som e organiza-o no tempo. Talvez seja esse o motivo que leva a música a estar sempre fugindo a qualquer definição, pois ao fazê-lo, a música já se alterou, já evoluiu. E esse jogo do tempo é simultaneamente físico e emocional, real e virtual.
Música é, no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, a

“Arte de conjugar os sons” (Verbo, 2001:2556)

e até aqui está em concordância com a definição anterior. Mas depois continua dizendo que esta “conjugação” deve ser feita de “forma melodiosa” e aqui já deixa de “fora” uma enorme quantidade de música que, ou nem sequer tem “melodia” - sendo unicamente rítmica e realizada em instrumentos sem altura definida - como toda uma série de tipologias musicais, como a música electrónica, concreta ou acusmática (para citar só algumas), em que, por vezes, é totalmente ignorado o aspecto “melódico” de determinada composição. E o enunciado continua dizendo-nos que esta “conjugação de sons” deve estar de “acordo com determinadas regras”, o que também é redutor, pois existem estilos musicais e obras que são totalmente alheias a quaisquer regras, como o caso da música intuitiva, da música improvisada e de certa música aleatória.
E por falar em música aleatória: encontramos ainda no mesmo dicionário que por música aleatória entende-se um

“sistema de composição que permite uma certa liberdade ao intérprete, podendo este combinar arbitrariamente alguns fragmentos”. (Verbo, 2001:2556)

Ora, se por um lado é verdade que isso se passa em alguns casos, também não é verdade noutros. Como no caso em que só o acto de criar obedece a um método aleatório composicional, mas que depois no acto interpretativo, este - o intérprete - tenha todos os parâmetros do som definidos e não haja lugar à improvisação ou a qualquer tipo de “liberdade” interpretativa. Para terminar, referir o facto de que este enunciado ainda nos diz que a música é capaz de “exprimir ou despertar emoções”, o que estamos totalmente de acordo, e que é capaz de “evocar certas realidades” e aqui pensamos que faltaria acrescentar “e certas abstracções”, o que é, para nós, um atributo bem mais importante da Música.
No Dicionário Online de Português, encontramos a seguinte definição de “música”: “Arte de combinar sons”. Poderemos pensar que esta definição ganharia com a inclusão de “e silêncios”, mas se - como vimos em Cutler que o silêncio é um “som”, então dispensa-se bem esse “pleonasmo” e aceitamos a definição como das mais sintetizadas e correctas que conhecemos. Mesmo que essa “combinação de sons” seja atingida por via aleatória ou até pela ausência de intenção de combinar seja o que for (como na música de Cage), é sempre uma “arte” que está por trás desses conceitos. No entanto a poesia dita – por exemplo – é uma “arte de combinar sons” e não é música.
Questionado sobre o que é a música, Tilbury diz-nos que "Música é feita pelo e para o homem, usando os sons que precisam e deixando o resto de fora ". Para Cutler "Música é uma linguagem inter-pessoal que produz um efeito abstracto ". Já para Eddie Prevóst,

“Music is the human production of sounds that are beyond the practical activity of survival i.e. finding food and shelter. Music has become a cultural instrument that serves to help humankind explain the world to themselves. The origins of music is embedded within the sounds perceived, copied and abstracted from the observable universe. It probably developed as an aid for ritual and religion. In this respect, it should be no surprise that a modern industrial society begins to adapt the sounds of industry and use them to explain, reveal and perhaps even celebrate (or express regret!) about the new forms of life experiences emerging with in industrial culture ”.
Na sua obra O Som E O Sentido, Wisnik diz-nos não ter querido fazer uma História da Música “no seu sentido mais usual: história de estilos e de autores, suas biografias, idiossincrasias e particularidades composicionais.” e, muito menos, “uma história da música tonal europeia entendida como música universal.”. Wisnik refere que o seu livro “fala do uso humano do som e da história desse uso.”. Ora, a que se refere o autor, quando nos diz que a sua obra nos fala “do uso humano do som”? A resposta parece-me lógica: à Música. A música, como som ordenado pelo ser humano, ou como nos diz Wisnik,

“um livro sobre vozes, silêncios, barulhos, acordes, tocatas e fugas, em diferentes sociedades e tempos.” (Wisnik, 1999:9).

Nattiez discute no seu ensaio “Som/Ruído”, um assunto que tem a ver com: “É uma partitura, música”? Para mim, é tão música, como um guião de cinema é um filme. Mas Dalhaus tem uma opinião diferente:

“Se, por um lado, a obra musical – entendida como associação de sons com sentido – parece, pois, constituir-se só por lá do texto, por outro, o conceito de obra musical, tal como se foi formando entre os séculos XIV e XVIII, implica a ideia de que uma composição fixa em notas não é um simples documento de prática musical, mas – em analogia com um poema – é um texto no significado expressivo e cuja exposição acústica desempenha uma função puramente interpretativa. A obra, que como tal existe também quando não é tocada, estaria portanto contida, em primeiro lugar, no texto e não na execução.” (Dalhaus, 2009:150).

Já Nattiez diz que, “mesmo sabendo que um músico é capaz de ouvir interiormente uma partitura ao lê-la”, refere que, essa
“escuta interior, e logo silenciosa, supõe a preexistência do sonoro; é necessário que ele tenha estado presente mesmo se, na experiência em questão, não é efectivado.” (Nattiez, 1984:213).

Diz Nattiez:

“Pertencem à música, silêncio, sons ou ruídos que os hábitos culturais e convenções tácitas nos fazem considerar como seus.” (Nattiez, 1984:214).

Aqui só alteraria “silêncio, sons ou ruídos”, por “todos os sons”, visto que – como já foi mostrado anteriormente, dizer “silêncio, sons ou ruídos”, ºe como dizer “preto, cores ou vermelhos”. Sendo que onde está “sons”, substituo por “cores”; onde está “ruídos” altero por “vermelhos” (existe ruído vermelho que é um som rico em baixas frequências), e por oposição, “silêncio”, seria ruído “preto” (a quase ausência de frequências do som no som e a ausência de cor na teoria das cores).
De notar que o “branco” é na teoria das cores, a soma de todas as cores (daí chamar-se de ruído “branco” a um som que contém todas as frequências do som), e que o preto é considerado como ausência de cor (enquanto que no som seria no caso do silêncio absoluto, a ausência de frequências). O que faz com que esta minha analogia do som com a cor, ou da música com a pintura, não seja assim tão for a do contexto. Pelo contrário. Ajuda a clarificar.
Depois Nattiez questiona-se:

“Podemos perguntar-nos, com o risco de passarmos por lamentáveis passadistas, se as músicas de tradição oral (que nunca abandonaram a altura, não o esqueçamos)…” (Nattiez, 1984:226).

A quais músicas de tradição oral se refere Nattiez? Aos Pauliteiros de Miranda? Em que sociedades? Quanta música africana – por exemplo - é essencialmente rítmica e muitas das vezes desprovida de instrumentação de altura definida. Quase a finalizar o seu ensaio, Nattiez refere que

“Cage sonha com um mundo harmonioso onde a diferença entre a a vida, a música e os ruídos é abolida.” (Nattiez, 1984:226).

Se para Attali a vida é ruído e a música é ruído, então esta frase de Cage era profética. Se música é ruído e se música é vida, então os sons da vida são música. Logo música é som. Diz Nattiez:

“A música universal não existe” (Nattiez, 1984:226).

É possível que não exista uma música que seja universalmente reconhecida como tal, mas é possível – ou pelo menos pode tentar-se –, chegarmos a uma definição de música que, esta sim, seja universal. Murray Schafer escreveu a John Cage a pedir-lhe a sua definição de música, e esta foi a resposta de Cage:

“Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora de salas de concertos” (Schafer, 2000:120).

Esta definição de música de Cage, é a mais próxima que encontrei da minha própria definição de música, que – na sua forma mais elementar – nos diz: Música é Som. Cage refere “sons” da mesma forma que eu quando refiro “som”, refiro-me a todos os tipos de sons. Depois Cage acrescenta: “sons à nossa volta”. Ou seja: todos os sons disponíveis. E que não necessitamos de estar numa sala de concerto para ouvirmos música. Logo, ele diz-nos que os sons de um parque, do tráfego das ruas de Nova Iorque, ou das cataratas do Niágara, podem ser música. Mas dizer que “música é som”, sem que mais nada fosse dito, será realmente suficiente para definir “música”? Segundo o músico e crítico Chris Cutler,

“But if, suddenly, all sound is ``music," then by definition, there can be no such thing as sound that is not music. The word music becomes meaningless, or rather it means ``sound." But ``sound" already means that. And when the word ``music" has been long minted and nurtured to refer to a particular activity in respect of sound -- namely its conscious and deliberate organization within a definite aesthetic and tradition -- I can see no convincing argument at this late stage for throwing these useful limitations into the dustbin...”

Para Schafer,

“Definir música meramente como “sons”, seria impensável há poucos anos atrás, mas hoje são as definições mais restritas que estão se revelando inaceitáveis. Pouco a pouco, no decorrer do século XX, todas as definições convencionais de música vêm sendo desacreditadas pelas abundantes actividades dos próprios músicos.” (Schafer, 1992:120).

Como quem diz: “menos é mais”. Mais vale arriscar enunciados sintéticos e concisos, que alongar definições e arriscar-se que, o que ontem era uma realidade, hoje já não o ser.
São poucas as definições de música que me satisfazem de um ponto de vista mais científico. Mas, curiosamente, é a definição de um escritor – Victor Hugo - uma das que mais me cativa: “La musique c´est du bruit qui pense”. Repare-se que, do ponto de vista da actualidade, poderíamos analisar que quando Hugo diz que “música é ruído”, é como nos anos 1970 Jacques Attali dizer-nos exactamente a mesma coisa: que a vida é ruído e que, portanto, música é ruído. E quando Hugo lhe acrescenta “qui pense”, significa – quanto a mim – o mesmo que nas definições de música mais actuais, onde música é “som organizado”. Aqui Hugo faz “poesia” e diz-nos que o ruído é “pensante”, ou seja, imbuído de racionalidade. Aliás o nome do livro de Schafer é “ouvido pensante”, o que também pressupõe a tal “racionalidade”. Já a famosa definição de Rousseau, de que música “são sons agradáveis aos ouvidos”, e que hoje tanto faz sorrir certos alunos e professores das escolas de música, bem como músicos e musicólogos, nos parece até ainda bastante eficaz. Repare-se em primeiro lugar: “música são sons”. Até aqui, está igual à do Cage. Depois acrescenta a subjectividade do “agradáveis”. Mas mesmo assim, mesmo com esta subjectividade, não é a música uma arte? E as artes não proporcionam “prazer”? Não nos agradam? Então, toda a música deve – à sua maneira – proporcionar prazer; ser agradável; a cada um de nós. Uns gostarão de ouvir Bach; outros raga indiano; outros noise music; outros free jazz; outros música concreta ou electrónica. E por último, quando diz “ao ouvido”, e supondo que o antropocentrismo estaria bem presente, cremos que Rousseau se refere ao “ouvido” do humano, logo está a “limitar” a arte musical à humanidade (o que continua a ser válido nos dias de hoje, quase por toda a classe musical).
Schafer fala-nos de uma nova “orquestra”, que seria todo o “universo sónico”, e afirma que

“Hoje todos os sons pertencem a um campo contínuo de possibilidades, situado dentro do domínio abrangente da música.” (Schafer, 1992:121).

E acrescenta: “E os novos músicos: qualquer um e qualquer coisa que soe”, fazendo-nos lembrar com esta frase o “How Musical is Man?” de John Blacking, onde sugere a música como algo de inato a todos os seres humanos.
De todas as músicas existentes no planeta é, com certeza, a música contemporânea, aquela que mais faz uso de todos os materiais sonoros que temos à disposição: do silêncio “digital” de um CD, ao ruído gravado de electricidade estática; de um som organizado de um pianista a tocar, a um som não-organizado tónico, de pingos de chuva caindo numa superfície metálica; da flauta ao sintetizador; do infra ao ultra-som. Diz-nos Wisnik:

“A música contemporânea é aquela que se defronta com a admissão de todos os materiais sonoros possíveis: som/ruído e silêncio (…)”(Wisnik, 1999:31).

Roger Scruton adverte que

“Nem todos os sons são música. Há ruídos, gritos, palavras e murmúrios que, ocorrendo na música, não são, em si próprios, música.” (Scruton, 2007:172).

Nesta frase, podemos observar, uma espécie de “paradoxo”, pois se esses sons ocorrem numa música, são com certeza sons musicais. “Gritos”, “palavras” e “murmúrios” fazem parte há milénios da música de muitos povos (seja uma tribo da Amazónia, o canto sussurrado do Burundi, ou mesmo numa ópera de Wagner). Ao afirmar isto Scruton tenta, creio, distinguir entre sons tónicos (sons musicais) e sons não-tónicos (sons não-musicais). Mas, como vimos, o sussurro faz parte da tradição musical dos Burundi; certas tribos da Amazónia usam percussões (instrumentos de altura-indefinida) há milénios na sua prática musical ou ritual; e Wagner usou sons de bigornas numa sua ópera. Quando ouvimos uma conversa entre duas pessoas num café, realmente não estamos a ouvir música. E, nesse sentido, quando ouvirmos essa conversa inserida numa composição de um qualquer compositor de música concreta, esses sons não-musicais, tornam-se em música e portanto, musicais.

“Quando é que o som se torna música? O tom não é factor decisivo: há sons tónicos que não são música (sirenes, toques de sino, linguagens tónicas), e música que não envolve sons tónicos (tambores africanos, por exemplo).” (Scruton, 2007:171-172).

Observamos aqui, a distinção entre sons “tónicos” e “não-tónicos” e que estes não são factores decisivos para a existência ou não de música. Mas o que parece que Scruton nos está a dizer, é que, certos sons não-musicais, são – especialmente nos dias de hoje – apropriados pelos músicos, para a sua música. E ao faze-lo, estes sons, tornam-se em sons musicais. Em música. Concluindo: nem todos os sons são música, mas todos os sons podem ser música, mesmo os que o ainda não são. Scruton tenta-nos explicar melhor o seu ponto de vista, colocando-nos a questão do ponto de vista do ouvinte:

“A abordagem à questão é melhorada colocando outra pergunta: o que é ouvir um som como música? Ouvidos como música, os sons são ouvidos numa relação uns com outros de tipo especial. Aparecem no interior de um ‹‹campo de força›› musical. A transformação é comparável com aquela que ocorre quando ouvimos um som como uma palavra. A palavra inglesa ‹‹bang›› consiste num som. Este som pode ocorrer na natureza, e ainda assim não ter o carácter de uma palavra. O que faz dele a palavra que é, é a gramática de uma linguagem, que mobiliza o som e o transforma numa palavra com um papel específico: ele designa um som ou uma acção em inglês, uma emoção em alemão. Ouvindo este som como uma palavra, ouço o ‹‹campo de força>> fornecido pela gramática. Do mesmo modo, ouvir um som como música não é apenas ouvi-lo, mas também ordená-lo, numa determinada espécie de relação com outros sons efectivos e possíveis. Ordenado dessa maneira, um som torna-se um ‹‹timbre››.” (Scruton, 2007:173).

Ou seja: um som passa a ser “musical”, quando este é “organizado”: seja pelo músico ou pelo ouvinte. Na obra 4´33´´de John Cage, todos os sons se tornam em música, nos ouvidos de quem os experiência, e ainda hoje há quem os não reconheça como “musicais”. Por outro lado, quando Scruton diz que um som assim ordenado torna-se num “timbre” e por isso, em música, refere – quanto a mim - timbre, não de um ponto de vista musical, mas sim filosófico. Vejamos como vê Scruton o timbre:

“Em música os timbres são ouvidos num espaço que lhes é próprio. Não se misturam com os outros sons do mundo que os rodeia, se bem que podem ser afogados por eles. A música existe no seu próprio mundo, e é libertada do mundo dos objectos. Também não ouvimos timbres em música como pertencendo à ordem causal.” (Scruton, 2007:174).

O timbre aqui, é mais que uma característica do som, é uma espécie de “som ordenado pelos seres racionais”, neste caso específico, para Scruton, pelo ser humano.

“O tema principal do último movimento da sinfonia Heróica de Beethoven consiste largamente em silêncios: mas a melodia continua ininterruptamente através destes silêncios, relativamente indiferente à presença ou ausência do som orquestral. É quase como se o som apontasse para a melodia, que existe noutro lugar, num espaço «inútil» que é de si próprio. Eis uma ilustração impressionante da distinção entre o mundo físico dos sons e o mundo ‹‹intencional›› da música.” (Scruton, 2007:177).

Esta diferença entre o som visto do ponto de vista “físico”, e o som observado do ponto de vista “musical”, reside essencialmente, na “casualidade” de um, e na “intencionalidade” do outro. Não basta a um som ser “organizado”, tem de conter nele a “intencionalidade” de ser música. E, essa “intencionalidade”, diz-nos Scruton, é dada pela razão, “os seres racionais”:

“Assim concebida, a música não é apenas um som agradável. É o objecto intencional de uma percepção musical: aquilo que ouvimos nos sons, quando os ouvimos como música.” (…) “Daí que a música possa tanto ser compreendida como incompreendida: compreender é ouvir uma ordem que «decifra» os sons. (…) Esta ordem não faz parte do mundo dos sons: só os seres racionais a podem perceber, uma vez que a sua origem reside na mente consciente de si.” (Scruton, 2007:179-180).

A música para Scruton, é um conceito pertencente aos seres racionais. Agora, se por seres racionais ele se quer referir exclusivamente ao ser humano, isso fica por se saber. Será que a gata Nora , quando toca no piano, não está a produzir música? Ela – a gata Nora – é um ser racional (executa uma série de raciocínios), e, quando toca no piano, parece retirar daí um prazer idêntico ao de um músico que toca uma peça de Beethoven ou dos Beatles. Não estará ela a fazer música? Mesmo que ela não tenha o conceito de música como nós seres humanos? É que há tribos pelo planeta que também não têm o conceito de música (como não têm o conceito de “porta traseira”, no entanto as suas habitações têm uma porta frontal e outra traseira), mas produzem e realizam, aquilo que nós (de outras civilizações) intitulamos de música.
As baleias, segundo April Pulley Sayre, além daquilo a que ela chama de “calls” (“chamamentos”), produzem música. Mas será isso tão impossível assim? Quando etnomusicólogos nos dizem que existem tribos sem o conceito de música ou mesmo o termo “música”, porque nos é difícil admitir isso em outros seres? A gata Nora não parece estar a retirar prazer no que faz? Estas baleias aqui citadas não estarão a “curtir” um “som”? Porquê sempre uma visão antropocêntrica? Porque não nos metemos um pouco no lugar dos outros para variar?
Eu tenho vindo a trabalhar numa definição de música, desde 2009. Essa pesquisa levou-me a questionar o que era o som e a sua matéria-prima. Pretendia uma definição de música universal (válida para toda a música do planeta), intemporal (que valesse para qualquer época da história da música universal desde o seu início até ao presente, e que se mantivesse consistente num futuro), e multi-estilística (que funcionasse para todos os estilos musicais existentes).
Sabia e sei, da dificuldade dos meus objectivos, e da responsabilidade que tal trabalho envolve. Mas, verifiquei pouco tempo depois de iniciar as minhas pesquisas, o quão aprendia com esta actividade minha: não só relacionado com o que é a música, mas sobre som, perspectiva musical, timbre, dinâmica, altura, tempo, espaço.
Quanto mais me envolvia na tentativa de definir música, mais problemas novos me surgiam, e tinha de estudá-los e entendê-los, e, desta forma, o meu entendimento sobre certas matérias ia evoluindo, crescendo. E, com esse conhecimento, vinha também a dúvida, o erro. Não pretendo afirmar que a minha actual definição de música, seja inalterável e definitiva. Pelo contrário, pretendo que esta se mantenha numa espécie de work in progress, e que a vá alterando, conforme pense, que me foi dado a conhecer um novo conhecimento, que me leve a pensar que pode trazer algo de novo ao meu enunciado. Mas estou satisfeito com o trabalho que desenvolvi até ao momento, e vou de seguida tentar mostrar, de forma sintetizada, o raciocínio e método de trabalho que usei, para atingir o estado actual da minha definição de música.
Comecei por pensar qual era a matéria-prima da música: era o som . Então comecei com uma fórmula simples, mas quanto a mim bastante completa e eficaz nos seus propósitos:

M=S

Música igual a som . Esta era a base da minha definição. Não lhe acrescentei o termo “organizado”, pela razão de eu entender que embora toda a música seja organizada, esta – a música – pode em si conter sons não-organizados (uma obra musical que contenha apenas o som do mar, é uma obra musical organizada, que contém uma paisagem sonora não-organizada).
Mas se música era igual a som, tinha de definir som: saber de que era feito. E então numa outra fase, acrescentei à minha fórmula o seguinte:

M=S (SL ∧∨R)

Em que dizia que o som continha silêncio e ou ruído. Ou seja: já considerava na altura o silêncio e o ruído como sendo tipos de sons. Mas o que era o silêncio e o ruído? E que outros tipos de sons existiam? E como relacionar tudo isto com música? Foi então que comecei a usar uma espécie de forma de pensamento ontológico. Comecei por dividir o som em dois grandes grupos: sons organizados e não-organizados; e estes em outros dois grupos: os sons tónicos e não-tónicos. Depois inclui então o silêncio e o ruído, sendo que estes dependiam da perspectiva. E como sons que são – o silêncio e o ruído - também podiam ser organizados e não-organizados, e tónicos e não-tónicos. Faltavam-me também incluir os sons eléctricos e electrónicos, e por fim os infra e ultra-sons. Sendo que todo este som era manipulado pelo ser humano , e que este pertence a determinada cultura (consoante as diferentes culturas, existem diferentes conceitos de música). Eis então como ficou a fórmula actual da minha definição de música:

M=S ⊃ [Sorg (t∧∨~t) ∧∨Sorg (t∧∨~t) ∧∨ {SL org (t∧∨~t) ∧∨ SL org (t∧∨~t) ∧∨R org (t∧∨~t) ∧∨ R org (t∧∨~t)} ⇔P ∧∨ Selt org (t∧∨~t) ∧∨ Selt ~org (t∧∨~t) ∧∨ Seltr org (t∧∨~t) ∧∨ Seltr ~org (t∧∨~t) ∧∨ SI org (i ∧∨ u) (t∧∨~t) ∧∨ SI ~org (i ∧∨u) (t∧∨~t)] ∈ SH ∈ Clt

Música igual a Som, sendo que este contém: Som organizado (tónico e ou não tónico) e ou Som não-organizado (tónico e ou não tónico); Silêncio organizado (tónico e ou não tónico) e ou Silêncio não-organizado (tónico e ou não tónico) e ou Ruído organizado (tónico e ou não tónico) e ou Ruído não-organizado (tónico e ou não tónico), sendo que silêncio e ruído dependem da perspectiva; e ou Som eléctrico organizado (tónico e ou não tónico) e ou Som eléctrico não-organizado (tónico e ou não tónico) e ou Som electrónico organizado (tónico e ou não tónico) e ou Som electrónico não-organizado (tónico e ou não tónico); Som Inaudível (infra e ou ultra sons); e todo este "som" é manipulado pelo Ser Humano (“pertence” ao ser humano) em determinada e específica Cultura (“pertence” a certa Cultura).
Uma vez entendido qual a matéria-prima do som e as suas qualidades, a fórmula poderá ser reduzida para:

M=S ∈ SH ∈ Clt

Música é som, manipulado pelo ser humano , pertencente a determinada cultura. O que faz aqui distinguir a música de outro qualquer som manipulado pelo ser humano e pertença de uma cultura (por exemplo a linguagem falada), mas que não seja – ainda – música, é a intencionalidade em transformar esse som em música. Dessa forma, todos os sons disponíveis ao ser humano, são potenciais materiais sonoros para a concepção e realização musicais, se assim houver essa intenção. Não basta um som ser organizado, tem de haver a intenção de o tornar música. Som devir música...

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