PARADOXOS E IDIOSSINCRASIAS NA ESCRITA MUSICAL
Tenho uma
satisfação enorme em observar partituras, com um prazer acrescentado se
se tratar de um manuscrito do compositor. Aprende-se imenso com um
manuscrito: tipo de papel utilizado; o tipo de caneta (tinta, feltro,
esferográfica) ou lápis/ lapiseira; apagadores
(borracha, tinta); uso ou não de régua; o que foi riscado/ cortado/ apagado/ emendado/ acrescentado; a velocidade da escrita.
É também a melhor maneira de observar as idiossincrasias de cada compositor.
Durante
essas observações, mais do que estudos, encontrei aquele que me parece
ser, o erro mais cometido simultaneamente por um número significativo de
compositores: o não alinhamento vertical das pausas em compassos que
não sejam totalmente silêncio.
Descobri também uma maneira de criar
compassos com pausas que preenchem a sua totalidade, e ao mesmo tempo
introduzir sons nesses mesmos compassos.
Dois paradoxos da escrita
musical: um obra de um erro perpetuado em nome da tradição, outro obtido
através do recurso de uma técnica que descobre uma "aparente falha no
sistema" e a usa como inovação técnica com benefícios para a escrita
musical.
Numa troca de correspondência, preciosa para mim, com o
compositor Helmut Lachenmann, pude pôr-lhe algumas destas questões, ao
que amavelmente me respondeu uma a uma e acrescentou esta afirmação:
"
I admire your sense of correctness but I'm not so much concerned with
this matter. I normally follow my sense of praxis, and my optic instinct
as a logic mind. I doubt if all can have logical reason. What is
important, is that it works. I think all your given alternatives may
make sense. Vertical alignment of rests: I never wrote, but this may be
logic if thought so by the composer ".
Eis pois as perguntas que o levou a proferir esta sentença:
P: Não acha que todas as pausas devem estar alinhadas verticalmente
( i.e., ritmicamente ) com as notas ou pausas em cima ou em baixo?
R: Acho que sim, é melhor dessa maneira…
P:
Reparei que você usa pausas que representem o valor actual do compasso,
em vez da tradicional pausa de semibreve. Concorda neste caso com o
alinhamento vertical das pausas, tratando-as (como às notas) de uma
maneira " democrática "?
R: Está bem se a música for num " estilo-dança " , tipo Schoenberg ou mesmo Webern, mas nunca na música de Nono, por exemplo…
P:
Até que forma é para si importante a adopção de um sistema de notação,
que se baseie no uso de sistemas iguais para casos idênticos de escrita,
isto é, acha importante a noção de " consistência na notação " ?
R: Porquê? Se a praxis nos habituou a coisas ilógicas?
P: Acontece-lhe então mudar de sistema de composição para composição?
R: de uma página para outra… , depende do que se passa com as outras partes. Eu não sou lógico!
P: Acha que as notas de semibreve num compasso 4/4, por exemplo, devem estar centradas ou à esquerda do compasso?
R: Ponha essa questão ao Beethoven ou ao Mahler!
P:
Que pensa deste uso das hastes nas notas de colcheia ou de menor
valor, ou seja, viradas de forma a nos darem uma leitura por unidade de
tempo?
R: É provavelmente uma excelente solução, porque não? eu próprio por vezes escrevo dessa forma.
Das suas respostas pode-se concluir, que:
1. Concordou que o alinhamento vertical das pausas era o mais correcto, embora afirmasse de seguida, que não escrevia assim.
2.
Embora use o sistema das pausas que preenchem o valor actual de um
compasso e concorde com o alinhamento vertical das pausas, não acha que
se possa usar as duas situações em simultâneo em alguns casos.
3. Diz que não é lógico e que altera de sistema de escrita musical de uma página para outra.
4.
Em relação à posição das semibreves respondeu com humor e alguma ironia
- nota: quando mostrei estas respostas ao compositor Louis Andriessen,
ele mostrou-se desgostoso com esta resposta em particular, não o
satisfazendo a ausência de uma resposta a esta questão, pois era uma
situação que lhe ocorria muitas vezes nas suas composições…
Se
encontro, vestígios, daquilo que eu podia chamar de, muito
presunçosamente "contradições", em algumas das respostas de Lachenmann,
estas devem-se àquele que considero ser um dos mais estranhos paradoxos
na escrita da maior parte dos compositores que eu conheço em manuscritos
e fac similes, ou seja, o não alinhamento vertical das pausas, uma vez
que depois são impressas correctamente.
Creio que a tradição, a
transmissão de professor para aluno, a prática no ensino, explica em
parte este caso, mas não explica a razão, da ausência de uma tentativa
de correcção deste paradoxo da notação.
Referi também um outro
paradoxo: o de através de um expediente da escrita musical, conseguir
introduzir sons num compasso preenchido de silêncio.
Esta técnica surgiu-me quando trabalhava na composição SPIN para piano solo.
Estando a trabalhar com apogiaturas com um diferente número de notas e
valores, comecei na fase final da peça a " abrir buracos " nos tempos
fortes, ou seja, a substituir com pausas os tempos fortes e
progressivamente todas as notas do compasso, com a excepção das
apogiaturas, até eventualmente chegarmos á situação de o compasso estar
totalmente preenchido com pausas e no entanto
(um paradoxo da escrita musical ocidental) conter notas.
Além
da mera " curiosidade ", creio poder obter-se situações musicais
interessantes em composições que envolvam dois ou mais intérpretes e se
queira obter um efeito rítmico semelhante ao do provocado por sistemas
aleatórios ( i.e., veja-se o caso extremo de uma composição para
orquestra escrita usando esta técnica durante toda a duração, ou seja,
preenchida na sua totalidade de silêncio, pausas, mas com sons/ notas
ocasionais como apogiaturas. Comparei esta técnica com um pouco de
humor…, com os buracos negros: diz-nos Stephen Hawking que os buracos
negros são regiões do espaço-tempo donde nada, nem mesmo a luz, pode
escapar, porque a gravidade é muito intensa; no entanto, como é possível
que um buraco negro emita partículas quando sabemos que nada consegue
escapar do seu horizonte? A resposta, segundo S. Hawking, é a de que
segundo nos diz a teoria quântica, as partículas não vêm de dentro do
buraco negro, mas sim do espaço vazio contíguo ao horizonte de
acontecimentos ! Assim, o compasso preenchido na sua totalidade de
pausas ( aonde em principio nenhum som pode existir ), emite afinal sons
( através do expediente musical que são as apogiaturas ).
Lachenmann diz que ele não é lógico. Com estas pequenas idiossincrasias
dos diferentes compositores e estes paradoxos do sistema de notação,
podemos concluír também que a notação não é lógica.
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