RUÍDO
“Há mais de vinte e cinco séculos, que o saber
ocidental tenta ver o mundo. Ainda não compreendeu que o mundo não se
olha, entende-se. Ele não se lê, escuta-se”. Isto é o que pensa do mundo
o filósofo Jacques Attali na sua obra seminal Bruits. “A vida é ruidosa
e só a morte é silenciosa” diz-nos Attali exemplificando que “estar
vivo é presenciar o ruído do trabalho, de festa, da vida, da natureza,
da revolta, da revolução, da oração, de música ou de dança”. “Com o
ruído”, diz-nos, “nasceram a desordem e o seu contrario: a música. Com a
música nasceram o poder e o seu contrario: a subversão. O ruído é
simultaneamente um instrumento de poder e fonte de revolta”. Tudo o que é
vivo, é ruído, segundo Attali. E para que não fiquem dúvidas da
importância que este dá à sua noção de ruído, vejamos o que mais nos diz
sobre esta matéria este pensador: “nada se passa de essencial no mundo,
sem que o ruído se manifeste”. Esta é a importância do ruído para este
homem e esta é a forma como ele pretende divulgar a sua mensagem.
No
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (2001:3288), podemos ler a
seguinte definição de ruído: “som ou conjunto de sons desagradáveis ao
ouvido e produzidos por vibrações irregulares, devidos a choque, pancada
ou queda”.
Nesta definição o que me incomoda é o termo
“desagradáveis”. Desagradável para quem? E, o que são sons
desagradáveis? Por outro lado – como veremos num outro capítulo – existe
ruído na música e até música feita só com ruídos. Como podem ser
desagradáveis esses sons, se são música? E, se como nos diz Attali, a
vida é ruidosa então isso significa que a vida é desagradável?
Vamos ver que outros enunciados de ruído podem interessar para o estudo e propósito deste trabalho.
Definir ruído não é tarefa fácil, porque envolve conceitos de ordem
fisiológica e psicológica e não apenas de ordem física. Qualquer
dicionário nos dirá que ruído “é um som muito forte”, definição que não
diz muito e que pode ser melhorada. Do ponto de vista fisiológico ruído
será: “todo o som que produza uma sensação auditiva desagradável,
incomodativa ou perigosa”. Pode dizer-se também, muito simplesmente
dizer que, ruído “é um som não desejado” e, neste sentido, o ruído será
então sempre algo de pessoal e subjectivo. Do ponto de vista físico pode
definir-se ruído como: “conjunto de sons ou ainda como toda a vibração
mecânica aleatória de um meio elástico”. Ou ainda: “ruído é um som ou
conjunto de sons desagradáveis e/ou perigosos, capazes de alterar o bem
estar fisiológico ou psicológico das pessoas, de provocar lesões
auditivas que podem levar à surdez”. No senso comum, a palavra ruído
significa barulho ou seja: “fenómeno acústico produzido por vibrações
irregulares, conjunto de sons discordantes e desarmónicos”.
Entre
uma definição que diz que ruído são “sons desagradáveis” ou outra que
enuncia que ruído são “vibrações irregulares”, opto pela segunda pois, a
primeira parece demasiado "subjectiva" - o que é "desagradável" para um
pode não o ser para outro - e a segunda diz que todos os sons cuja
vibração não seja regular é um "ruído"; ora isso faz com que um som de
um sino seja um ruído; e sendo um ruído - porque as suas vibrações são
irregulares e dessa forma é difícil estabelecer uma altura ao som -
porque é que não é "desagradável"? Pelo contrário: é usado até em Música
há muitos anos.
Mas, não são "ruídos" os sons produzidos por
certos instrumentos de percussão? Pode-se dizer então, que desde sempre a
Música usou "ruído" na sua concepção? Nesta segunda definição de ruído,
temos o termo “desagradáveis” substituído por “discordantes ou
desarmónicos”, o que nos parece menos subjectivo e mais musical.
Sobre “ruído”, diz o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, que este é
“qualquer som indistinto sem harmonia”, sendo que por “indistinto”
deve-se entender uma incapacidade de lhe reconhecermos uma altura
definida e por “sem harmonia” o facto de estes sons (ruídos) não
“obedecerem” à série dos harmónicos, como é característico em certos
instrumentos musicais ou na voz humana, devido à irregularidade das suas
vibrações.
"Um som que não desejamos" é a definição de ruído para
Cutler. Embora me agrade mais o termo "desejamos" ao de "desagradável",
acho necessário questionar: "e quando se usa o ruído em música? “Quando é
que esse ruído passa a ser um som musical"? Ao que Cutler respondeu: "
it is always sound, but when we talk about common usage, we are in what
wittgenstein would call a language game, meaning that the context
(cultural and social) is essential to the meaning. Some communities -
who use 'noise' in a positive way, for instance, want to indicate an
aesthetic use of material that they think does not belong in - or which
actively opposes'- what they think of as 'normal' music: by which they
mean organised sound made of fixed pitches and identifiable rhythms in a
coherent structure. So, while they also mean sound that is unwanted (by
others) it is wanted by them; in other words, they are trying to rescue
or liberate 'noise' because they believe it has a meaningful and
aesthetic quality. In this, they use 'noise' rather the way 18 century
romantics used the term 'ugly'. Such noise becomes musical material if
is employed in a conventionally musical way; hence the 'liberation of
the dissonance' (Schoenberg et al), or the extension of careful
organisation (Russolo through Varese), otherwise, in my understanding,
it is unhelpful to call it musical. Thus Cage's aleatoric works are not
works of music; a new term is needed for new objects intended for
aesthetic listening.
My soundscape pieces, for instance, are not
music, neither are they simply noise, but they are framed and organised
sounds intended for aesthetic listening. 'Industrial' music (as it was
called in the '70s) and the forms that followed it, used the noise term
in a somewhat different way; there was still the romantic connection to
'ugly' as a valid material, but more strongly a connection to a sense of
disgust, the abject and annihilation. arguably this pursues less an
aesthetic use of rejected material (a bringing in) than a political or
psychological use of it (stressing it's out-ness).
Lastly, noise is
also used to indicate 'uncomfortably loud'. In this context even music
can become noise. while most noise is sound in a high entropy state (as
music is low entropy), very loud sounds become noise irrespective of
their entropic state because of the disabling effect they have
psychologically. When it's too loud to think, information becomes
meaningless. But, at a physical level, as separation of self from sound
recedes, self ceases to exist (or becomes all that exists, it's the
same) and one becomes invulnerable. This is not an aesthetic use of
sound, but something more primitive, I think". Ou seja: a música pode
ser ruído (devido à dinâmica), embora num contexto diferente do da visão
de Attali.
O "ruído" tal como "silêncio", não existe para Tilbury e
exactamente pela mesma razão que não existe silêncio: ambos (ruído e
silêncio) são uma "espécie de som" e por isso podemos chamar-lhes
simplesmente "som".
Para Murray Schafer - tal como para Cutler -
ruído "é um som indesejável", mas diz também que "para o homem sensível
aos sons, o mundo está repleto de ruídos". Ou seja, o mundo para Schafer
está cheio de sons indesejáveis. Diz também que "o ruído é o negativo
do som musical" o que não deixa de ser um paradoxo para quem como ele
que dedicou a sua vida ao estudo de "paisagens sonoras" e para quem o
ruído é parte integrante suas composições.
Já o “ruído” para
Giancarlo Schiaffini “contém música” como “uma pedra de mármore de
Carrara para o Michaelangelo”, numa interpretação semelhante à de Attali
em que “tudo é ruído” e assim, não seria a música que contém ruído, mas
sim o contrário: o ruído seria uma pasta onde o ficheiro “música” faria
parte entre outros.
Para Eddie Prevóst “Noise is the audible evidence for some kind of physical movement”.
No
dia em que Cage celebrava o seu sexagenário aniversário e indo ser
interpretadas várias obras suas no mesmo espaço e em simultâneo, um
musicólogo o interrogou: não tem receio que tanto som em simultâneo
resulte em ruído branco? Ao que Cage respondeu: “sei que vai ser
ruído...mas não sei a cor”. John Cage nesta resposta mostra através do
humor, que para ele, era pouco importante se iria ou não existir ruído
na acumulação das suas composições, uma vez que para ele próprio o som
e/ou ruído são música.
Por outro lado é interessante notar, que aos
diferentes tipos de ruído, foram dados nomes de cores (ruído branco,
ruído rosa, ruído vermelho) o que leva a supor de que quem os denominou
assim, estabeleceu uma relação entre som e cor estabelecendo assim que
um ruído branco terá de alguma forma, uma similitude com a composição da
cor “branco” e o mesmo para as restantes cores e respectivos ruídos.
Já
Luigi Russolo, acreditava que a vida contemporânea era demasiado
ruidosa e que os ruídos deveriam ser utilizados para música. Russolo foi
um percursor na Música: a frase “sons organizados” com que define
Música, é geralmente atribuída ao compositor Edgar Varèse. É dele a
frase “deliciamo-nos muito mais a combinar nos nossos pensamentos os de
sons de comboios, de motores de automóveis ou de grandes multidões, do
que voltarmos a ouvir a Eroica ou a Sinfonia Pastorale”, que 50 anos
mais tarde seria proferida por Cage e que provavelamente, este teria
lido, na tradução efectuada para francês em 1954. “Os esplendores do
Mundo foram enriquecidos com uma nova beleza - a beleza da velocidade”,
diz Russolo antecipando a “dromologia” de Paul Virilio. “Temos que
quebrar o círculo apertado dos sons musicais puros e conquistar a
infinita variedade dos sons ruidosos” antevendo o surgimento das músicas
electrónica e concreta. Russolo viu a destruição do sistema harmónico
como uma evolução e não como uma revolução. Ele alertou da necessidade
para uma metódica investigação das diferentes categorias de ruído, o que
viria a acontecer com o “Tratado dos Objectos Sonoros” de Pierre
Schaeffer. Os tímbres da orquestra sinfónica - para Russolo - ofereciam
um limitado espectro sonoro e “estático” - no sentido de que os tímbres
dos instrumentos eram fixos (havia flexibilidade na altura do som mas
não no tímbre) - e, que eram necessários novos instrumentos que
permitissem ao compositor regular os harmónicos dos sons e controlar a
“cor” da nota musical. Esses instrumentos aparecem em finais da década
de 1950, com o surgimento dos primeiros sintetizadores. Russolo foi
talvez o primeiro compositor a perceber que o ruído era sómente uma
forma de onda irregular - com componentes de frequências aperiódicas e
que o “tom” e o “ruído” podiam ser unidos num continuum.
Fabuloso livro o da Attali (Noise - the political economy of Music). E pensar que foi escrito em 77. Um visionário.
ResponderEliminarexactamente !!! Pena depois ter-se desviado... Mas fica o livro!!! (y)
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