ONDE SE LOCALIZA UM SOM?
...onde localizo o som – que ouço aqui, no meu
escritório - da buzina do carro que acabou de apitar na rua, e que ouvi
filtrado pelo vidro da minha janela? Na fonte sonora (o carro); no meio
(a rua, o vidro e o espaço do meu escritório); ou apenas na minha
cabeça (sistema auditivo e cérebro)? Ou apercebermo-nos de um som é um
conjunto de todos estes factores?
Para sabermos onde se localiza o som precisamos antes de saber o que é o som. Já vimos anteriormente de que era constituído o som, agora interessa saber o que é o som. Será o som algo do tipo “objecto” ou mais do tipo “evento”? Ou será antes uma propriedade ou qualidade de objectos ou eventos e, neste caso, será uma qualidade primária ou secundária?
Para sabermos onde se localiza o som precisamos antes de saber o que é o som. Já vimos anteriormente de que era constituído o som, agora interessa saber o que é o som. Será o som algo do tipo “objecto” ou mais do tipo “evento”? Ou será antes uma propriedade ou qualidade de objectos ou eventos e, neste caso, será uma qualidade primária ou secundária?
Antes de me remeter ao que filósofos da
música têm a dizer sobre este assunto, gostava desde já de dizer que,
para mim, o som é um acontecimento audível. E que eu ouço a buzina do
carro lá fora na estrada pelo vidro do meu escritório através do som do
motor do automóvel (fonte), da rua, do vidro e do ambiente do meu
escritório (o meio), e pelo meu sistema auditivo, que me transmite
informação que o meu cérebro descodifica.
Sem a “fonte” não existe vibração; sem o “meio” não se propaga o som; e sem o sistema auditivo/cérebro (transdutor) não se estrutura o som.
O som da buzina do automóvel em si é um acontecimento que se desenrola no espaço e no tempo. E se este som for reproduzido numa sala de concerto através de altifalantes dispostos de forma acertada (respeitando o estéreo), obtemos um acontecimento a desenrolar-se temporalmente num espaço, desta feita um auditório.
Uma mulher que ande de sapatos de tacão alto, à noite, pelas ruas de Veneza, produz uma realidade sónica vivida por ela e por quem a ouça passar. Se gravarmos esse som, registaremos o som dos sapatos na pedra, mas também o som ambiente do espaço onde decorria essa acção. Se ouvirmos essa gravação num estúdio em Londres e gravarmos o som saído por altifalantes, estaremos a gravar no ambiente sonoro de um estúdio em Londres, um som produzido nas ruas de Veneza. E se, depois, gravarmos em disco e este for publicado, alguém no Alaska poderá, numa divisão da sua casa, ouvir um tema musical que contém a gravação de uma mulher de sapatos de tacão alto a caminhar à noite em ruas de pedra de Veneza, cujo som foi depois reproduzido num estúdio em Londres, e gravado, mesclando o som ambiente reverberado das ruas de Veneza com o som ambiente com pouca reverberação da sala de um estúdio.
Se o som fosse um objecto, dois ou mais sons não poderiam ocupar o mesmo espaço simultaneamente. Mas um uníssono de uma nota dó dada por uma flauta e um fagote parecem ocupar o mesmo espaço. E o nosso ouvido tem a capacidade de distinguir esses dois sons. De os descodificar. Num acontecimento audível, mesmo descontextualizado (o som da buzina de um automóvel escutado num auditório), continuamos a apreender/percepcionar o tipo de som, sem o relacionarmos com fonte sonora: temos uma experiência acusmática.
A mesa não é castanha. A refracção da luz é que nos transmite essa sensação. Os nossos olhos efectuam essa tradução. Da mesma forma, uma vibração causada por variadas frequências só se transforma em ruído branco no nosso cérebro.
Durante o período que durou a preparação desta minha investigação, efectuei muitos soundwalkings e experimentei caminhar por várias paisagens sonoras. Mas a experiência sónica mais próxima e importante, que teve algo a ver com a localização do som, foi a que efectuei na Galeria Zé dos Bois em Lisboa durante um concerto da Variable Geometrical Orchestral em que actuei posicionado no proscénio, no centro de vários músicos com diferentes instrumentos: um baterista, um percussionista, um violoncelista, uma guitarra preparada, uma trompete e um trombone, um contrabaixo electrificado, mais dois trompetes e um trombone e eu na guitarra electrónica.
A maior parte do tempo pude estar sentado a ouvir os outros instrumentos, de olhos fechados, tentando perceber de onde vinham os sons. Constatei que o som da bateria vinha exactamente de onde esta estava situada mas projectado um metro para a frente, ou seja, eu ouvia todas as peças que constituíam aquela bateria (prato de choques, bombo de chão, tarola, dois címbalos, e dois tom tons) e respeitando o estéreo, mas um metro mais à frente do que era a sua posição real no espaço. Ouvia o som da guitarra eléctrica preparada a sair do seu amplificador exactamente onde se situava. Os sons da trompete e do trombone à minha direita escutava-os da mesma forma que a bateria: um metro mais à frente do que a posição real . O violoncelo estava mesmo ao meu lado e era lá que eu o ouvia no meu cérebro. Apenas os dois trompetes e o trombone situados à minha esquerda é que pareciam soar dentro do meu crânio e não da sua posição real e que era a cerca de um metro de mim. Esses, pareciam estar em três pontos da minha cabeça, separados apenas por cêntimetros uns dos outros, mas mantendo a sua posição espacial.
Parece-me que estes instrumentos (trompete, trombone), possuem um dom (a que eu chamei de “ventriloquismo sónico”) que faz com que o som não aparente vir da fonte sonora, mas de um outro sítio no medium, neste caso concreto, a um metro de distância, bem dentro da minha cabeça.
A cigarra – o insecto – tem este dom. É-nos extremamente difícil localizar a posição real de uma cigarra através do som que esta emite. E isto independentemente do meio (nunca experienciei o som de uma cigarra numa sala mas já o fiz em cidades, campos e jardins). E é extremamente difícil determinar onde se localiza a fonte sonora, tal é o efeito de ventriloquismo sónico deste insecto.
E não tem a ver só com intensidade ou perspectiva, pois o som das cigarras induz-me em erro (não saber determinar onde se encontra posicionado a fonte sonora) ainda a uma certa distância da fonte sonora e por isso mesmo com uma fraca intensidade sonora; mas também sou induzido em erro quando tento posicioná-las estando muito próximo da fonte sonora e quando o som produzido pelas cigarras é de forte intensidade. Também o som das trompetes tocadas com uma forte intensidade e a uma grande proximidade do meu sistema auditivo me induziu em erro, pois ouço-o na realidade a aproximadamente um metro do local onde elas estão na realidade posicionadas. Isto acontecia quando os metais tocavam a altas intensidades. Os sons de fraca intensidade já não provocavam esse efeito: ouvia-os no sítio real, na fonte sonora.
Mas como é que o som tem sido pensado? Para Casey O’Callaghan,
“Sounds are public objects of auditory perception. When a car starts it makes a sound; when hands clap the result is a sound. Sounds are what we hear during episodes of genuine hearing. Sounds have properties such as pitch, timbre, and loudness. But this tells us little about what sort of thing a sound is—which metaphysical category it belongs to. (Nudds & O´Callaghan, 2009:26).
O’Callaghan acha – tal como eu – que de pouco serve sabermos que o som tem propriedades como a altura, o timbre e a intensidade, pois isso não nos diz a que categoria metafísica o som pertence. Mas quando diz que quando batemos palmas produzimos um som, está a pressupor que alguém escuta esse som. Se não existir receptor não há som mas apenas vibração, o que sugere que o som deveria ser classificado como uma qualidade secundária, como faz Locke, que sustenta que
“sounds are properties of bodies. More specifically, he held that sounds are secondary qualities: sensible qualities possessed by bodies in virtue of the ‘size, figure, number, and motion’ of their parts, but nonetheless distinct from these primary attributes (Essay, II.8)” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Ou seja, em vez de ver os sons como eventos, Locke vê-os como propriedade dos objectos (fonte sonora) e classifica-os como qualidades secundárias, isto é, qualidades subjectivas e dependentes da mente mas causadas por um objecto percepcionado.
Para Robert Pasnau, os sons são
“physical properties of ordinary external objects” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Pasnau afirma que
“sounds are properties of objects, though he reduces sound to the primary quality that is the categorical base of Locke’s power, i.e., that of vibration or motion of a particular sort” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Esta não é a visão da maior parte dos físicos da acústica. Estes cientistas e físicos têm uma visão do som completamente diferente. O som
“is a disturbance that moves through a medium such as air or water as a longitudinal compression wave. Vibrating objects produce sounds, but sounds themselves are waves. When we hear sounds, we do not immediately hear bodies or properties of bodies; we hear the pattern of pressure differences that constitutes a wave disturbance in the surrounding medium” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Os objectos vibram produzindo ondas sonoras, mas isso não significa que nós ouçamos os objectos em si ou as suas propriedades.
Segundo O´Callaghan existem duas teorias sobre o som: a teoria do som como ondas (Aristóteles) e a teoria do som como eventos. Para Aristóteles
“‘sound is a particular movement of air” (…) “everything which makes a sound does so because something strikes something else in something else again, and this last is air” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Para os pensadores da visão do som como eventos (que é a minha visão) os sons são
“particular events of a certain kind. They are events in which a moving object disturbs a surrounding medium and sets it moving. The strikings and crashings are not the sounds, but are the causes of sounds. The waves in the medium are not the sounds themselves, but are the effects of sounds. Sounds so conceived possess the properties we hear sounds as possessing: pitch, timbre, loudness, duration, and as we shall see, spatial location. When all goes well in ordinary auditory perception, we hear sounds much as they are” (Nudds & O´Callaghan, 2009:28).
Mas que tipo de coisa é o som? Nudds e O´Callaghan dizem-nos que
“Sounds are among the things we hear. Auditory experience is directed upon sounds. Sounds, therefore, are intentional objects of audition” (Nudds & O´Callaghan, 2009:4).
Durante a minha tese, tentei enumerar os diferentes tipos de sons que existem: dos infra aos ultra-sons, dos sons eléctricos aos electrónicos, do silêncio ao ruído, todos estes eventos eram som. Sendo assim, não existe nada que nós ouçamos que não seja som.
“it is plausible to say that whenever you hear something, and whatever you hear, you hear a sound. It is doubtful you could hear something without hearing a sound” (Nudds & O´Callaghan, 2009:5).
Vários filósofos do som, impressionados pela natureza temporal do som, argumentam que
“sounds are events of a certain kind” (Nudds & O´Callaghan, 2009:6).
O´Callaghan adianta que a presença de um medium
“is a necessary condition not just upon the perceptibility but upon the existence of a sound, and proposes that sounds are events in which vibrating objects or interacting bodies actively disturb a surrounding medium” (Nudds & O´Callaghan, 2009:6).
Após estas inúmeras definições de som apresentadas aqui por estes filósofos da música e a minha apresentada no início deste meu sub-capítulo, podemos agora discutir onde este se localiza: na fonte, no medium ou no receptor. Este é um outro ponto de discórdia entre diversos pensadores, para além dos debates sobre se os sons são dependentes da mente ou independentes desta; se os sons são indivíduos ou propriedades; se são do tipo-objecto ou do tipo-evento. Vejamos, então, o que nos dizem Nudds e O´Callaghan sobre esta matéria:
“One main disagreement between the wave-based accounts of sound such as those of Nudds, Sorensen, and O’Shaughnessy (see also Hamilton, Chapter 8) and source-based accounts such as those of Pasnau, Casati and Dokic, and O’Callaghan (see also Matthen forthcoming) concerns the locations of sounds. The former locate sounds in the medium and imply that sounds propagate and thus occupy different locations over time, or travel. The latter hold that sounds are located at or near their sources and do not travel through the medium—sounds travel only if their sources do” (Nudds & O´Callaghan, 2009:7).
Depois avançam que
“Distal sound theorists commonly argue that sounds seem in auditory experience to be located at or near their sources. Sounds, they claim, do not seem travel from the source towards your ears, do not under ordinary conditions seem to pervade the medium (perhaps they do under special circumstances, such as in a loud nightclub), and do not seem to be nearby or at the ears. Instead, they claim that sounds auditorily seem to be where the things and events that generate them are located. If we do experience sounds to be distally located, and if sounds are roughly where they seem to be, then sounds do not travel through the medium as wave accounts imply. Distal theorists charge that unless we systematically misperceive the locations of sounds, sounds do not travel through the medium as do pressure waves” (Nudds & O´Callaghan, 2009:8).
Já Hamilton, por exemplo, pensa de forma diferente e argumenta que
“we hear only where the traveling sounds have come from, rather than where they are” (Nudds & O´Callaghan, 2009:8).
Os teóricos que pensam como Hamilton afirmam que
“The physical waves are not the sounds, and the sounds do not travel with the waves, but the waves mediate between sounds and hearers” (Nudds & O´Callaghan, 2009:8).
Outros autores defendem – como eu – que a localização dos sons (na altura em que os ouvimos) se encontra num estágio diferente na cadeia causal que medeia entre a fonte e o receptor:
“That causal chain begins with the activities of things in the environment, leads to wave-like motion in a medium, continues with stimulation of the auditory sense organs, and culminates in auditory experiences. Distal theories locate the sounds we hear at an earlier stage in the causal sequence than do proximal theories” (Nudds & O´Callaghan, 2009:8-9).
Será que quando escutamos sons nos apercebemos de alguma forma do espaço onde estes agem?
“It would be difficult to deny that hearing conveys spatial information” (Nudds & O´Callaghan, 2009:9).
Alguns teóricos defendem que
“you hear sounds to be located at some distance in a given direction and thereby come to learn about, and perhaps even to hear, the locations of their sources” (Nudds & O´Callaghan, 2009:9).
Desse modo dizem-nos que
“Under such conditions, auditory experience might have spatial content or represent spatial features” (Nudds & O´Callaghan, 2009:10).
Nudds, por exemplo, argumenta que
“that sound sources, rather than sounds themselves, are auditorily experienced as distally located. This accommodates the empirical evidence about auditory localization without accepting that sounds themselves are experienced to be located” (Nudds & O´Callaghan, 2009:10).
Alguns teóricos do som dizem que
“locations of sound sources is provided by the audible locations of sounds at their sources” (Nudds & O´Callaghan, 2009:10).
Por contraste com esta visão, alguns pensadores que atribuem
“spatial content to auditory experiences hold that audition attributes spatial properties to sound sources” (Nudds & O´Callaghan, 2009:10).
Quando ouvimos o som de uma bola de andebol a bater no chão de um pavilhão, ouvimos só o som da bola ou ouvimos também o som do espaço onde este se realiza? Segundo O´Callaghan
“in hearing the sound of footsteps I might also hear the enclosed space in which they are being taken” (Nudds & O´Callaghan, 2009:12).
A localização do som é um debate recente na nova teoria do som e é algo com que alguns pensadores, especialmente no âmbito da filosofia da música, têm tentado lidar . A acústica diz-nos que o som consiste em ondas que viajam da fonte sonora até aos nossos ouvidos. Actualmente há quem discorde deste ponto de vista (como vimos anteriormente) e tente dar uma nova visão à localização do som. Creio ser muito importante esta discussão e o facto de haver cada vez mais teóricos interessados nesta problemática é, certamente, um sinal dessa importância. Os sons estão por todo o lado e precisamos de saber como chegam até nós e de que forma nós os apreendemos; e, especificamente, qual a importância da fonte sonora, do medium e do receptor nesta manifestação sónica.
Esta é uma matéria que me parece mais pertencer à ontologia ou à metafísica do som do que à acústica...
Sem a “fonte” não existe vibração; sem o “meio” não se propaga o som; e sem o sistema auditivo/cérebro (transdutor) não se estrutura o som.
O som da buzina do automóvel em si é um acontecimento que se desenrola no espaço e no tempo. E se este som for reproduzido numa sala de concerto através de altifalantes dispostos de forma acertada (respeitando o estéreo), obtemos um acontecimento a desenrolar-se temporalmente num espaço, desta feita um auditório.
Uma mulher que ande de sapatos de tacão alto, à noite, pelas ruas de Veneza, produz uma realidade sónica vivida por ela e por quem a ouça passar. Se gravarmos esse som, registaremos o som dos sapatos na pedra, mas também o som ambiente do espaço onde decorria essa acção. Se ouvirmos essa gravação num estúdio em Londres e gravarmos o som saído por altifalantes, estaremos a gravar no ambiente sonoro de um estúdio em Londres, um som produzido nas ruas de Veneza. E se, depois, gravarmos em disco e este for publicado, alguém no Alaska poderá, numa divisão da sua casa, ouvir um tema musical que contém a gravação de uma mulher de sapatos de tacão alto a caminhar à noite em ruas de pedra de Veneza, cujo som foi depois reproduzido num estúdio em Londres, e gravado, mesclando o som ambiente reverberado das ruas de Veneza com o som ambiente com pouca reverberação da sala de um estúdio.
Se o som fosse um objecto, dois ou mais sons não poderiam ocupar o mesmo espaço simultaneamente. Mas um uníssono de uma nota dó dada por uma flauta e um fagote parecem ocupar o mesmo espaço. E o nosso ouvido tem a capacidade de distinguir esses dois sons. De os descodificar. Num acontecimento audível, mesmo descontextualizado (o som da buzina de um automóvel escutado num auditório), continuamos a apreender/percepcionar o tipo de som, sem o relacionarmos com fonte sonora: temos uma experiência acusmática.
A mesa não é castanha. A refracção da luz é que nos transmite essa sensação. Os nossos olhos efectuam essa tradução. Da mesma forma, uma vibração causada por variadas frequências só se transforma em ruído branco no nosso cérebro.
Durante o período que durou a preparação desta minha investigação, efectuei muitos soundwalkings e experimentei caminhar por várias paisagens sonoras. Mas a experiência sónica mais próxima e importante, que teve algo a ver com a localização do som, foi a que efectuei na Galeria Zé dos Bois em Lisboa durante um concerto da Variable Geometrical Orchestral em que actuei posicionado no proscénio, no centro de vários músicos com diferentes instrumentos: um baterista, um percussionista, um violoncelista, uma guitarra preparada, uma trompete e um trombone, um contrabaixo electrificado, mais dois trompetes e um trombone e eu na guitarra electrónica.
A maior parte do tempo pude estar sentado a ouvir os outros instrumentos, de olhos fechados, tentando perceber de onde vinham os sons. Constatei que o som da bateria vinha exactamente de onde esta estava situada mas projectado um metro para a frente, ou seja, eu ouvia todas as peças que constituíam aquela bateria (prato de choques, bombo de chão, tarola, dois címbalos, e dois tom tons) e respeitando o estéreo, mas um metro mais à frente do que era a sua posição real no espaço. Ouvia o som da guitarra eléctrica preparada a sair do seu amplificador exactamente onde se situava. Os sons da trompete e do trombone à minha direita escutava-os da mesma forma que a bateria: um metro mais à frente do que a posição real . O violoncelo estava mesmo ao meu lado e era lá que eu o ouvia no meu cérebro. Apenas os dois trompetes e o trombone situados à minha esquerda é que pareciam soar dentro do meu crânio e não da sua posição real e que era a cerca de um metro de mim. Esses, pareciam estar em três pontos da minha cabeça, separados apenas por cêntimetros uns dos outros, mas mantendo a sua posição espacial.
Parece-me que estes instrumentos (trompete, trombone), possuem um dom (a que eu chamei de “ventriloquismo sónico”) que faz com que o som não aparente vir da fonte sonora, mas de um outro sítio no medium, neste caso concreto, a um metro de distância, bem dentro da minha cabeça.
A cigarra – o insecto – tem este dom. É-nos extremamente difícil localizar a posição real de uma cigarra através do som que esta emite. E isto independentemente do meio (nunca experienciei o som de uma cigarra numa sala mas já o fiz em cidades, campos e jardins). E é extremamente difícil determinar onde se localiza a fonte sonora, tal é o efeito de ventriloquismo sónico deste insecto.
E não tem a ver só com intensidade ou perspectiva, pois o som das cigarras induz-me em erro (não saber determinar onde se encontra posicionado a fonte sonora) ainda a uma certa distância da fonte sonora e por isso mesmo com uma fraca intensidade sonora; mas também sou induzido em erro quando tento posicioná-las estando muito próximo da fonte sonora e quando o som produzido pelas cigarras é de forte intensidade. Também o som das trompetes tocadas com uma forte intensidade e a uma grande proximidade do meu sistema auditivo me induziu em erro, pois ouço-o na realidade a aproximadamente um metro do local onde elas estão na realidade posicionadas. Isto acontecia quando os metais tocavam a altas intensidades. Os sons de fraca intensidade já não provocavam esse efeito: ouvia-os no sítio real, na fonte sonora.
Mas como é que o som tem sido pensado? Para Casey O’Callaghan,
“Sounds are public objects of auditory perception. When a car starts it makes a sound; when hands clap the result is a sound. Sounds are what we hear during episodes of genuine hearing. Sounds have properties such as pitch, timbre, and loudness. But this tells us little about what sort of thing a sound is—which metaphysical category it belongs to. (Nudds & O´Callaghan, 2009:26).
O’Callaghan acha – tal como eu – que de pouco serve sabermos que o som tem propriedades como a altura, o timbre e a intensidade, pois isso não nos diz a que categoria metafísica o som pertence. Mas quando diz que quando batemos palmas produzimos um som, está a pressupor que alguém escuta esse som. Se não existir receptor não há som mas apenas vibração, o que sugere que o som deveria ser classificado como uma qualidade secundária, como faz Locke, que sustenta que
“sounds are properties of bodies. More specifically, he held that sounds are secondary qualities: sensible qualities possessed by bodies in virtue of the ‘size, figure, number, and motion’ of their parts, but nonetheless distinct from these primary attributes (Essay, II.8)” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Ou seja, em vez de ver os sons como eventos, Locke vê-os como propriedade dos objectos (fonte sonora) e classifica-os como qualidades secundárias, isto é, qualidades subjectivas e dependentes da mente mas causadas por um objecto percepcionado.
Para Robert Pasnau, os sons são
“physical properties of ordinary external objects” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Pasnau afirma que
“sounds are properties of objects, though he reduces sound to the primary quality that is the categorical base of Locke’s power, i.e., that of vibration or motion of a particular sort” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Esta não é a visão da maior parte dos físicos da acústica. Estes cientistas e físicos têm uma visão do som completamente diferente. O som
“is a disturbance that moves through a medium such as air or water as a longitudinal compression wave. Vibrating objects produce sounds, but sounds themselves are waves. When we hear sounds, we do not immediately hear bodies or properties of bodies; we hear the pattern of pressure differences that constitutes a wave disturbance in the surrounding medium” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Os objectos vibram produzindo ondas sonoras, mas isso não significa que nós ouçamos os objectos em si ou as suas propriedades.
Segundo O´Callaghan existem duas teorias sobre o som: a teoria do som como ondas (Aristóteles) e a teoria do som como eventos. Para Aristóteles
“‘sound is a particular movement of air” (…) “everything which makes a sound does so because something strikes something else in something else again, and this last is air” (Nudds & O´Callaghan, 2009:27).
Para os pensadores da visão do som como eventos (que é a minha visão) os sons são
“particular events of a certain kind. They are events in which a moving object disturbs a surrounding medium and sets it moving. The strikings and crashings are not the sounds, but are the causes of sounds. The waves in the medium are not the sounds themselves, but are the effects of sounds. Sounds so conceived possess the properties we hear sounds as possessing: pitch, timbre, loudness, duration, and as we shall see, spatial location. When all goes well in ordinary auditory perception, we hear sounds much as they are” (Nudds & O´Callaghan, 2009:28).
Mas que tipo de coisa é o som? Nudds e O´Callaghan dizem-nos que
“Sounds are among the things we hear. Auditory experience is directed upon sounds. Sounds, therefore, are intentional objects of audition” (Nudds & O´Callaghan, 2009:4).
Durante a minha tese, tentei enumerar os diferentes tipos de sons que existem: dos infra aos ultra-sons, dos sons eléctricos aos electrónicos, do silêncio ao ruído, todos estes eventos eram som. Sendo assim, não existe nada que nós ouçamos que não seja som.
“it is plausible to say that whenever you hear something, and whatever you hear, you hear a sound. It is doubtful you could hear something without hearing a sound” (Nudds & O´Callaghan, 2009:5).
Vários filósofos do som, impressionados pela natureza temporal do som, argumentam que
“sounds are events of a certain kind” (Nudds & O´Callaghan, 2009:6).
O´Callaghan adianta que a presença de um medium
“is a necessary condition not just upon the perceptibility but upon the existence of a sound, and proposes that sounds are events in which vibrating objects or interacting bodies actively disturb a surrounding medium” (Nudds & O´Callaghan, 2009:6).
Após estas inúmeras definições de som apresentadas aqui por estes filósofos da música e a minha apresentada no início deste meu sub-capítulo, podemos agora discutir onde este se localiza: na fonte, no medium ou no receptor. Este é um outro ponto de discórdia entre diversos pensadores, para além dos debates sobre se os sons são dependentes da mente ou independentes desta; se os sons são indivíduos ou propriedades; se são do tipo-objecto ou do tipo-evento. Vejamos, então, o que nos dizem Nudds e O´Callaghan sobre esta matéria:
“One main disagreement between the wave-based accounts of sound such as those of Nudds, Sorensen, and O’Shaughnessy (see also Hamilton, Chapter 8) and source-based accounts such as those of Pasnau, Casati and Dokic, and O’Callaghan (see also Matthen forthcoming) concerns the locations of sounds. The former locate sounds in the medium and imply that sounds propagate and thus occupy different locations over time, or travel. The latter hold that sounds are located at or near their sources and do not travel through the medium—sounds travel only if their sources do” (Nudds & O´Callaghan, 2009:7).
Depois avançam que
“Distal sound theorists commonly argue that sounds seem in auditory experience to be located at or near their sources. Sounds, they claim, do not seem travel from the source towards your ears, do not under ordinary conditions seem to pervade the medium (perhaps they do under special circumstances, such as in a loud nightclub), and do not seem to be nearby or at the ears. Instead, they claim that sounds auditorily seem to be where the things and events that generate them are located. If we do experience sounds to be distally located, and if sounds are roughly where they seem to be, then sounds do not travel through the medium as wave accounts imply. Distal theorists charge that unless we systematically misperceive the locations of sounds, sounds do not travel through the medium as do pressure waves” (Nudds & O´Callaghan, 2009:8).
Já Hamilton, por exemplo, pensa de forma diferente e argumenta que
“we hear only where the traveling sounds have come from, rather than where they are” (Nudds & O´Callaghan, 2009:8).
Os teóricos que pensam como Hamilton afirmam que
“The physical waves are not the sounds, and the sounds do not travel with the waves, but the waves mediate between sounds and hearers” (Nudds & O´Callaghan, 2009:8).
Outros autores defendem – como eu – que a localização dos sons (na altura em que os ouvimos) se encontra num estágio diferente na cadeia causal que medeia entre a fonte e o receptor:
“That causal chain begins with the activities of things in the environment, leads to wave-like motion in a medium, continues with stimulation of the auditory sense organs, and culminates in auditory experiences. Distal theories locate the sounds we hear at an earlier stage in the causal sequence than do proximal theories” (Nudds & O´Callaghan, 2009:8-9).
Será que quando escutamos sons nos apercebemos de alguma forma do espaço onde estes agem?
“It would be difficult to deny that hearing conveys spatial information” (Nudds & O´Callaghan, 2009:9).
Alguns teóricos defendem que
“you hear sounds to be located at some distance in a given direction and thereby come to learn about, and perhaps even to hear, the locations of their sources” (Nudds & O´Callaghan, 2009:9).
Desse modo dizem-nos que
“Under such conditions, auditory experience might have spatial content or represent spatial features” (Nudds & O´Callaghan, 2009:10).
Nudds, por exemplo, argumenta que
“that sound sources, rather than sounds themselves, are auditorily experienced as distally located. This accommodates the empirical evidence about auditory localization without accepting that sounds themselves are experienced to be located” (Nudds & O´Callaghan, 2009:10).
Alguns teóricos do som dizem que
“locations of sound sources is provided by the audible locations of sounds at their sources” (Nudds & O´Callaghan, 2009:10).
Por contraste com esta visão, alguns pensadores que atribuem
“spatial content to auditory experiences hold that audition attributes spatial properties to sound sources” (Nudds & O´Callaghan, 2009:10).
Quando ouvimos o som de uma bola de andebol a bater no chão de um pavilhão, ouvimos só o som da bola ou ouvimos também o som do espaço onde este se realiza? Segundo O´Callaghan
“in hearing the sound of footsteps I might also hear the enclosed space in which they are being taken” (Nudds & O´Callaghan, 2009:12).
A localização do som é um debate recente na nova teoria do som e é algo com que alguns pensadores, especialmente no âmbito da filosofia da música, têm tentado lidar . A acústica diz-nos que o som consiste em ondas que viajam da fonte sonora até aos nossos ouvidos. Actualmente há quem discorde deste ponto de vista (como vimos anteriormente) e tente dar uma nova visão à localização do som. Creio ser muito importante esta discussão e o facto de haver cada vez mais teóricos interessados nesta problemática é, certamente, um sinal dessa importância. Os sons estão por todo o lado e precisamos de saber como chegam até nós e de que forma nós os apreendemos; e, especificamente, qual a importância da fonte sonora, do medium e do receptor nesta manifestação sónica.
Esta é uma matéria que me parece mais pertencer à ontologia ou à metafísica do som do que à acústica...
What?! ;)
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