...Ao
longo da sua história a Música esteve ligada a diversos actos, como
rituais sagrados; foi usada como suporte pelas classes dominantes; ou
simplesmente usada como uma forma de arte popular. Hoje, no vasto
labirinto em que se cruzaram as múltiplas tendências da vida musical a
partir dos anos 1940, estamos rodeados de música: música nas lojas ou
grandes centros comerciais, música para conduzirmos, música nos
elevadores, música para adormecermos, comer, conversar ou fazer a
mor.
A rádio e a TV inundam-nos de música gastronómica, pop/ rock; em menor
doses, jazz, ópera, clássica, ou, raramente, música electrónica,
concreta, improvisada, serial, etnográfica, minimal.
Assim, o
músico de hoje tem ao seu dispor, toda uma multiplicidade de formas
musicais e de diferentes civilizações para poder desenvolver o seu
trabalho.
Para vermos a real importância que a música tem nas nossas
vidas – se é que isso é ainda necessário – tomemos como exemplo uma
história passada na Antiga China . Conta-se que o Imperador Shun, de
forma a controlar o seu reino e verificar que tudo estava em ordem,
todos os segundos meses de cada ano, fazia uma viagem pelo seu reinado.
No entanto, não o fazia observando os livros da economia das suas
províncias, nem tão pouco vendo a forma de viver das suas populações.
Também não interrogava os seus oficiais, nem queria saber o que pensavam
os seus súbditos. Ele não utilizava nenhum desses métodos, pois na
antiga China havia um método muito mais exacto, revelador e científico
para se inteirar do estado do seu reino. De acordo com o antigo texto
chinês Shu King, o Imperador ia através dos seus vastos territórios e
testava e escutava os exactos tons das suas notas musicais. Regressado
ao seu palácio e querendo monitorizar a eficiência da sua governação,
não pedia conselhos aos políticos, nem revia a economia ou queria saber
do estado da opinião popular (embora por vezes recorresse a esses
métodos), antes queria, acima disto tudo, ouvir e testar as cinco notas
da antiga escala musical chinesa. Ele pedia a oito músicos que tocavam
os oito tipos diferentes de instrumentos chineses e escutava-os
interpretando canções populares, bem como composições da corte, e
observava se toda essa música estava em perfeita correspondência com as
cinco notas. Se o Imperador Shun, nas suas viagens através do seu reino,
descobrisse que os instrumentos dos seus diferentes territórios estavam
todos com diferentes afinações entre eles, então ele poderia concluir
que os próprios territórios em si poderiam começar a divergir entre si,
perder a sua unidade e poderem mesmo entrar em conflitos, a menos que a
afinação fosse imediatamente corrigida e tornada uniforme em todos os
lugares. Ou se a música que ele ouvisse nos diferentes locais lhe
parecesse vulgar e imoral, então ele poderia esperar que a imoralidade
varresse a nação, a menos que algo fosse feito no sentido de corrigir
essa mesma música.
Tal era a importância que na Antiga China era dada à música.
Definir música não é algo fácil de concretizar, pois apesar de ser
intuitivamente apercebida por qualquer humano, é-nos impossível
encontrar um conceito que contenha todos os significados dessa praxis.
Vejamos como o cientista Steven Pinker define música, no seu livro de
1997, intitulado How the Mind Works:
“Music is auditory
cheesecake, an exquisite confection crafted to tickle the sensitive
spots of at least six of our mental faculties” ( Ball, 2010:3).
Pinker desafia todos aqueles que acreditam na importância da música (e
aqui por música referimo-nos à intenção de produzir som, organizado, e
visto pelas culturas onde se realiza como um acto musical,
independentemente desse povo ter ou não ter o termo música na sua
língua, ou sequer existir entre eles o conceito de música) na vida
evolucionária do ser humano, dizendo:
“Compared with language,
vision, social reasoning, and phisical know-how, music could vanish from
our species and the rest of our lifestyle would be virtually unchanged.
Music appears to be a pure pleasure technology, a cocktail of
recreational drugs that we ingest through the ear to stimulate a mass of
pleasure circuits at once” (Ball, 2010:3).
Tão pouca
importância para uma coisa que hoje nos parece não podermos viver sem
ela. Philip Ball diz-nos que esta frase de Pinker foi interpretada,
“As a chalange to prove that music has a fundamental evolutionary
value, that it has somehow helped us to survive as a species, that we
are genetically predisposed to be music-makers and music-lovers” (Ball, 2
010:3).
E se Pinker tem razão, mesmo assim, diz-nos Ball,
“you could not eliminate it from our cultures without changing our brains” (Ball, 2 010:5).
E porquê? Segundo Ball, porque
“music is an inevitable product of human intelligence, regardless of
whether or not that arrives as a genetic inheritance. The human mind
quite naturally pocesses the mental apparatus for musicality, and it
will make use of these tools whether we conscously will it or not. Music
is something we as species do by choice – it is ingrained in our
auditory, cognitive and motor functions, and is implicit in the way we
construct our sonic landscape” (Ball, 2010:5).
Segundo Ball, música é
“gymnasium for the mind”. No other activity seems to use so many parts
of the brain at once, nor to promote their integration (the tiresome,
cod-psychological classification of people as ´left brain` or ´right
brain`is demolished where music is concerned).” (Ball, 2010:7-8).
Para o musicólogo Ian Cross,
“Music can be defined as those temporally patterned human activities,
individual and social, that involve the prodution and perception of
sound and have no evident and immediate efficacy or fixed consensual
reference.” (Ball, 20109).
A música contém e manipula o som e
organiza-o no tempo. Talvez seja esse o motivo que leva a música a estar
sempre fugindo a qualquer definição, pois ao fazê-lo, a música já se
alterou, já evoluiu. E esse jogo do tempo é simultaneamente físico e
emocional, real e virtual.
Música é, no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, a
“Arte de conjugar os sons” (Verbo, 2001:2556)
e até aqui está em concordância com a definição anterior. Mas depois
continua dizendo que esta “conjugação” deve ser feita de “forma
melodiosa” e aqui já deixa de “fora” uma enorme quantidade de música
que, ou nem sequer tem “melodia” - sendo unicamente rítmica e realizada
em instrumentos sem altura definida - como toda uma série de tipologias
musicais, como a música electrónica, concreta ou acusmática (para citar
só algumas), em que, por vezes, é totalmente ignorado o aspecto
“melódico” de determinada composição. E o enunciado continua dizendo-nos
que esta “conjugação de sons” deve estar de “acordo com determinadas
regras”, o que também é redutor, pois existem estilos musicais e obras
que são totalmente alheias a quaisquer regras, como o caso da música
intuitiva, da música improvisada e de certa música aleatória.
E por falar em música aleatória: encontramos ainda no mesmo dicionário que por música aleatória entende-se um
“sistema de composição que permite uma certa liberdade ao intérprete,
podendo este combinar arbitrariamente alguns fragmentos”. (Verbo,
2001:2556)
Ora, se por um lado é verdade que isso se passa em
alguns casos, também não é verdade noutros. Como no caso em que só o
acto de criar obedece a um método aleatório composicional, mas que
depois no acto interpretativo, este - o intérprete - tenha todos os
parâmetros do som definidos e não haja lugar à improvisação ou a
qualquer tipo de “liberdade” interpretativa. Para terminar, referir o
facto de que este enunciado ainda nos diz que a música é capaz de
“exprimir ou despertar emoções”, o que estamos totalmente de acordo, e
que é capaz de “evocar certas realidades” e aqui pensamos que faltaria
acrescentar “e certas abstracções”, o que é, para nós, um atributo bem
mais importante da Música.
No Dicionário Online de Português,
encontramos a seguinte definição de “música”: “Arte de combinar sons”.
Poderemos pensar que esta definição ganharia com a inclusão de “e
silêncios”, mas se - como vimos em Cutler que o silêncio é um “som”,
então dispensa-se bem esse “pleonasmo” e aceitamos a definição como das
mais sintetizadas e correctas que conhecemos. Mesmo que essa “combinação
de sons” seja atingida por via aleatória ou até pela ausência de
intenção de combinar seja o que for (como na música de Cage), é sempre
uma “arte” que está por trás desses conceitos. No entanto a poesia dita –
por exemplo – é uma “arte de combinar sons” e não é música.
Questionado sobre o que é a música, Tilbury diz-nos que "Música é feita
pelo e para o homem, usando os sons que precisam e deixando o resto de
fora ". Para Cutler "Música é uma linguagem inter-pessoal que produz um
efeito abstracto ". Já para Eddie Prevóst,
“Music is the human
production of sounds that are beyond the practical activity of survival
i.e. finding food and shelter. Music has become a cultural instrument
that serves to help humankind explain the world to themselves. The
origins of music is embedded within the sounds perceived, copied and
abstracted from the observable universe. It probably developed as an aid
for ritual and religion. In this respect, it should be no surprise that
a modern industrial society begins to adapt the sounds of industry and
use them to explain, reveal and perhaps even celebrate (or express
regret!) about the new forms of life experiences emerging with in
industrial culture ”.
Na sua obra O Som E O Sentido, Wisnik diz-nos
não ter querido fazer uma História da Música “no seu sentido mais usual:
história de estilos e de autores, suas biografias, idiossincrasias e
particularidades composicionais.” e, muito menos, “uma história da
música tonal europeia entendida como música universal.”. Wisnik refere
que o seu livro “fala do uso humano do som e da história desse uso.”.
Ora, a que se refere o autor, quando nos diz que a sua obra nos fala “do
uso humano do som”? A resposta parece-me lógica: à Música. A música,
como som ordenado pelo ser humano, ou como nos diz Wisnik,
“um livro sobre vozes, silêncios, barulhos, acordes, tocatas e fugas, em diferentes sociedades e tempos.” (Wisnik, 1999:9).
Nattiez discute no seu ensaio “Som/Ruído”, um assunto que tem a ver
com: “É uma partitura, música”? Para mim, é tão música, como um guião de
cinema é um filme. Mas Dalhaus tem uma opinião diferente:
“Se,
por um lado, a obra musical – entendida como associação de sons com
sentido – parece, pois, constituir-se só por lá do texto, por outro, o
conceito de obra musical, tal como se foi formando entre os séculos XIV e
XVIII, implica a ideia de que uma composição fixa em notas não é um
simples documento de prática musical, mas – em analogia com um poema – é
um texto no significado expressivo e cuja exposição acústica desempenha
uma função puramente interpretativa. A obra, que como tal existe também
quando não é tocada, estaria portanto contida, em primeiro lugar, no
texto e não na execução.” (Dalhaus, 2009:150).
Já Nattiez diz que, “mesmo sabendo que um músico é capaz de ouvir interiormente uma partitura ao lê-la”, refere que, essa
“escuta interior, e logo silenciosa, supõe a preexistência do sonoro; é
necessário que ele tenha estado presente mesmo se, na experiência em
questão, não é efectivado.” (Nattiez, 1984:213).
Diz Nattiez:
“Pertencem à música, silêncio, sons ou ruídos que os hábitos culturais e
convenções tácitas nos fazem considerar como seus.” (Nattiez,
1984:214).
Aqui só alteraria “silêncio, sons ou ruídos”, por
“todos os sons”, visto que – como já foi mostrado anteriormente, dizer
“silêncio, sons ou ruídos”, ºe como dizer “preto, cores ou vermelhos”.
Sendo que onde está “sons”, substituo por “cores”; onde está “ruídos”
altero por “vermelhos” (existe ruído vermelho que é um som rico em
baixas frequências), e por oposição, “silêncio”, seria ruído “preto” (a
quase ausência de frequências do som no som e a ausência de cor na
teoria das cores).
De notar que o “branco” é na teoria das cores, a
soma de todas as cores (daí chamar-se de ruído “branco” a um som que
contém todas as frequências do som), e que o preto é considerado como
ausência de cor (enquanto que no som seria no caso do silêncio absoluto,
a ausência de frequências). O que faz com que esta minha analogia do
som com a cor, ou da música com a pintura, não seja assim tão for a do
contexto. Pelo contrário. Ajuda a clarificar.
Depois Nattiez questiona-se:
“Podemos perguntar-nos, com o risco de passarmos por lamentáveis
passadistas, se as músicas de tradição oral (que nunca abandonaram a
altura, não o esqueçamos)…” (Nattiez, 1984:226).
A quais
músicas de tradição oral se refere Nattiez? Aos Pauliteiros de Miranda?
Em que sociedades? Quanta música africana – por exemplo - é
essencialmente rítmica e muitas das vezes desprovida de instrumentação
de altura definida. Quase a finalizar o seu ensaio, Nattiez refere que
“Cage sonha com um mundo harmonioso onde a diferença entre a a vida, a música e os ruídos é abolida.” (Nattiez, 1984:226).
Se para Attali a vida é ruído e a música é ruído, então esta frase de
Cage era profética. Se música é ruído e se música é vida, então os sons
da vida são música. Logo música é som. Diz Nattiez:
“A música universal não existe” (Nattiez, 1984:226).
É possível que não exista uma música que seja universalmente
reconhecida como tal, mas é possível – ou pelo menos pode tentar-se –,
chegarmos a uma definição de música que, esta sim, seja universal.
Murray Schafer escreveu a John Cage a pedir-lhe a sua definição de
música, e esta foi a resposta de Cage:
“Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora de salas de concertos” (Schafer, 2000:120).
Esta definição de música de Cage, é a mais próxima que encontrei da
minha própria definição de música, que – na sua forma mais elementar –
nos diz: Música é Som. Cage refere “sons” da mesma forma que eu quando
refiro “som”, refiro-me a todos os tipos de sons. Depois Cage
acrescenta: “sons à nossa volta”. Ou seja: todos os sons disponíveis. E
que não necessitamos de estar numa sala de concerto para ouvirmos
música. Logo, ele diz-nos que os sons de um parque, do tráfego das ruas
de Nova Iorque, ou das cataratas do Niágara, podem ser música. Mas dizer
que “música é som”, sem que mais nada fosse dito, será realmente
suficiente para definir “música”? Segundo o músico e crítico Chris
Cutler,
“But if, suddenly, all sound is ``music," then by
definition, there can be no such thing as sound that is not music. The
word music becomes meaningless, or rather it means ``sound." But
``sound" already means that. And when the word ``music" has been long
minted and nurtured to refer to a particular activity in respect of
sound -- namely its conscious and deliberate organization within a
definite aesthetic and tradition -- I can see no convincing argument at
this late stage for throwing these useful limitations into the
dustbin...”
Para Schafer,
“Definir música meramente
como “sons”, seria impensável há poucos anos atrás, mas hoje são as
definições mais restritas que estão se revelando inaceitáveis. Pouco a
pouco, no decorrer do século XX, todas as definições convencionais de
música vêm sendo desacreditadas pelas abundantes actividades dos
próprios músicos.” (Schafer, 1992:120).
Como quem diz: “menos é
mais”. Mais vale arriscar enunciados sintéticos e concisos, que alongar
definições e arriscar-se que, o que ontem era uma realidade, hoje já
não o ser.
São poucas as definições de música que me satisfazem de
um ponto de vista mais científico. Mas, curiosamente, é a definição de
um escritor – Victor Hugo - uma das que mais me cativa: “La musique
c´est du bruit qui pense”. Repare-se que, do ponto de vista da
actualidade, poderíamos analisar que quando Hugo diz que “música é
ruído”, é como nos anos 1970 Jacques Attali dizer-nos exactamente a
mesma coisa: que a vida é ruído e que, portanto, música é ruído. E
quando Hugo lhe acrescenta “qui pense”, significa – quanto a mim – o
mesmo que nas definições de música mais actuais, onde música é “som
organizado”. Aqui Hugo faz “poesia” e diz-nos que o ruído é “pensante”,
ou seja, imbuído de racionalidade. Aliás o nome do livro de Schafer é
“ouvido pensante”, o que também pressupõe a tal “racionalidade”. Já a
famosa definição de Rousseau, de que música “são sons agradáveis aos
ouvidos”, e que hoje tanto faz sorrir certos alunos e professores das
escolas de música, bem como músicos e musicólogos, nos parece até ainda
bastante eficaz. Repare-se em primeiro lugar: “música são sons”. Até
aqui, está igual à do Cage. Depois acrescenta a subjectividade do
“agradáveis”. Mas mesmo assim, mesmo com esta subjectividade, não é a
música uma arte? E as artes não proporcionam “prazer”? Não nos agradam?
Então, toda a música deve – à sua maneira – proporcionar prazer; ser
agradável; a cada um de nós. Uns gostarão de ouvir Bach; outros raga
indiano; outros noise music; outros free jazz; outros música concreta ou
electrónica. E por último, quando diz “ao ouvido”, e supondo que o
antropocentrismo estaria bem presente, cremos que Rousseau se refere ao
“ouvido” do humano, logo está a “limitar” a arte musical à humanidade
(o que continua a ser válido nos dias de hoje, quase por toda a classe
musical).
Schafer fala-nos de uma nova “orquestra”, que seria todo o “universo sónico”, e afirma que
“Hoje todos os sons pertencem a um campo contínuo de possibilidades,
situado dentro do domínio abrangente da música.” (Schafer, 1992:121).
E acrescenta: “E os novos músicos: qualquer um e qualquer coisa que
soe”, fazendo-nos lembrar com esta frase o “How Musical is Man?” de John
Blacking, onde sugere a música como algo de inato a todos os seres
humanos.
De todas as músicas existentes no planeta é, com certeza, a
música contemporânea, aquela que mais faz uso de todos os materiais
sonoros que temos à disposição: do silêncio “digital” de um CD, ao ruído
gravado de electricidade estática; de um som organizado de um pianista a
tocar, a um som não-organizado tónico, de pingos de chuva caindo numa
superfície metálica; da flauta ao sintetizador; do infra ao ultra-som.
Diz-nos Wisnik:
“A música contemporânea é aquela que se
defronta com a admissão de todos os materiais sonoros possíveis:
som/ruído e silêncio (…)”(Wisnik, 1999:31).
Roger Scruton adverte que
“Nem todos os sons são música. Há ruídos, gritos, palavras e murmúrios
que, ocorrendo na música, não são, em si próprios, música.” (Scruton,
2007:172).
Nesta frase, podemos observar, uma espécie de
“paradoxo”, pois se esses sons ocorrem numa música, são com certeza sons
musicais. “Gritos”, “palavras” e “murmúrios” fazem parte há milénios da
música de muitos povos (seja uma tribo da Amazónia, o canto sussurrado
do Burundi, ou mesmo numa ópera de Wagner). Ao afirmar isto Scruton
tenta, creio, distinguir entre sons tónicos (sons musicais) e sons
não-tónicos (sons não-musicais). Mas, como vimos, o sussurro faz parte
da tradição musical dos Burundi; certas tribos da Amazónia usam
percussões (instrumentos de altura-indefinida) há milénios na sua
prática musical ou ritual; e Wagner usou sons de bigornas numa sua
ópera. Quando ouvimos uma conversa entre duas pessoas num café,
realmente não estamos a ouvir música. E, nesse sentido, quando ouvirmos
essa conversa inserida numa composição de um qualquer compositor de
música concreta, esses sons não-musicais, tornam-se em música e
portanto, musicais.
“Quando é que o som se torna música? O tom
não é factor decisivo: há sons tónicos que não são música (sirenes,
toques de sino, linguagens tónicas), e música que não envolve sons
tónicos (tambores africanos, por exemplo).” (Scruton, 2007:171-172).
Observamos aqui, a distinção entre sons “tónicos” e “não-tónicos” e que
estes não são factores decisivos para a existência ou não de música.
Mas o que parece que Scruton nos está a dizer, é que, certos sons
não-musicais, são – especialmente nos dias de hoje – apropriados pelos
músicos, para a sua música. E ao faze-lo, estes sons, tornam-se em sons
musicais. Em música. Concluindo: nem todos os sons são música, mas todos
os sons podem ser música, mesmo os que o ainda não são. Scruton
tenta-nos explicar melhor o seu ponto de vista, colocando-nos a questão
do ponto de vista do ouvinte:
“A abordagem à questão é
melhorada colocando outra pergunta: o que é ouvir um som como música?
Ouvidos como música, os sons são ouvidos numa relação uns com outros de
tipo especial. Aparecem no interior de um ‹‹campo de força›› musical. A
transformação é comparável com aquela que ocorre quando ouvimos um som
como uma palavra. A palavra inglesa ‹‹bang›› consiste num som. Este som
pode ocorrer na natureza, e ainda assim não ter o carácter de uma
palavra. O que faz dele a palavra que é, é a gramática de uma linguagem,
que mobiliza o som e o transforma numa palavra com um papel específico:
ele designa um som ou uma acção em inglês, uma emoção em alemão.
Ouvindo este som como uma palavra, ouço o ‹‹campo de força>>
fornecido pela gramática. Do mesmo modo, ouvir um som como música não é
apenas ouvi-lo, mas também ordená-lo, numa determinada espécie de
relação com outros sons efectivos e possíveis. Ordenado dessa maneira,
um som torna-se um ‹‹timbre››.” (Scruton, 2007:173).
Ou seja:
um som passa a ser “musical”, quando este é “organizado”: seja pelo
músico ou pelo ouvinte. Na obra 4´33´´de John Cage, todos os sons se
tornam em música, nos ouvidos de quem os experiência, e ainda hoje há
quem os não reconheça como “musicais”. Por outro lado, quando Scruton
diz que um som assim ordenado torna-se num “timbre” e por isso, em
música, refere – quanto a mim - timbre, não de um ponto de vista
musical, mas sim filosófico. Vejamos como vê Scruton o timbre:
“Em música os timbres são ouvidos num espaço que lhes é próprio. Não se
misturam com os outros sons do mundo que os rodeia, se bem que podem ser
afogados por eles. A música existe no seu próprio mundo, e é libertada
do mundo dos objectos. Também não ouvimos timbres em música como
pertencendo à ordem causal.” (Scruton, 2007:174).
O timbre
aqui, é mais que uma característica do som, é uma espécie de “som
ordenado pelos seres racionais”, neste caso específico, para Scruton,
pelo ser humano.
“O tema principal do último movimento da
sinfonia Heróica de Beethoven consiste largamente em silêncios: mas a
melodia continua ininterruptamente através destes silêncios,
relativamente indiferente à presença ou ausência do som orquestral. É
quase como se o som apontasse para a melodia, que existe noutro lugar,
num espaço «inútil» que é de si próprio. Eis uma ilustração
impressionante da distinção entre o mundo físico dos sons e o mundo
‹‹intencional›› da música.” (Scruton, 2007:177).
Esta diferença
entre o som visto do ponto de vista “físico”, e o som observado do
ponto de vista “musical”, reside essencialmente, na “casualidade” de um,
e na “intencionalidade” do outro. Não basta a um som ser “organizado”,
tem de conter nele a “intencionalidade” de ser música. E, essa
“intencionalidade”, diz-nos Scruton, é dada pela razão, “os seres
racionais”:
“Assim concebida, a música não é apenas um som
agradável. É o objecto intencional de uma percepção musical: aquilo que
ouvimos nos sons, quando os ouvimos como música.” (…) “Daí que a música
possa tanto ser compreendida como incompreendida: compreender é ouvir
uma ordem que «decifra» os sons. (…) Esta ordem não faz parte do mundo
dos sons: só os seres racionais a podem perceber, uma vez que a sua
origem reside na mente consciente de si.” (Scruton, 2007:179-180).
A música para Scruton, é um conceito pertencente aos seres racionais.
Agora, se por seres racionais ele se quer referir exclusivamente ao ser
humano, isso fica por se saber. Será que a gata Nora , quando toca no
piano, não está a produzir música? Ela – a gata Nora – é um ser racional
(executa uma série de raciocínios), e, quando toca no piano, parece
retirar daí um prazer idêntico ao de um músico que toca uma peça de
Beethoven ou dos Beatles. Não estará ela a fazer música? Mesmo que ela
não tenha o conceito de música como nós seres humanos? É que há tribos
pelo planeta que também não têm o conceito de música (como não têm o
conceito de “porta traseira”, no entanto as suas habitações têm uma
porta frontal e outra traseira), mas produzem e realizam, aquilo que nós
(de outras civilizações) intitulamos de música.
As baleias, segundo
April Pulley Sayre, além daquilo a que ela chama de “calls”
(“chamamentos”), produzem música. Mas será isso tão impossível assim?
Quando etnomusicólogos nos dizem que existem tribos sem o conceito de
música ou mesmo o termo “música”, porque nos é difícil admitir isso em
outros seres? A gata Nora não parece estar a retirar prazer no que faz?
Estas baleias aqui citadas não estarão a “curtir” um “som”? Porquê
sempre uma visão antropocêntrica? Porque não nos metemos um pouco no
lugar dos outros para variar?
Eu tenho vindo a trabalhar numa
definição de música, desde 2009. Essa pesquisa levou-me a questionar o
que era o som e a sua matéria-prima. Pretendia uma definição de música
universal (válida para toda a música do planeta), intemporal (que
valesse para qualquer época da história da música universal desde o seu
início até ao presente, e que se mantivesse consistente num futuro), e
multi-estilística (que funcionasse para todos os estilos musicais
existentes).
Sabia e sei, da dificuldade dos meus objectivos, e da
responsabilidade que tal trabalho envolve. Mas, verifiquei pouco tempo
depois de iniciar as minhas pesquisas, o quão aprendia com esta
actividade minha: não só relacionado com o que é a música, mas sobre
som, perspectiva musical, timbre, dinâmica, altura, tempo, espaço.
Quanto mais me envolvia na tentativa de definir música, mais problemas
novos me surgiam, e tinha de estudá-los e entendê-los, e, desta forma, o
meu entendimento sobre certas matérias ia evoluindo, crescendo. E, com
esse conhecimento, vinha também a dúvida, o erro. Não pretendo afirmar
que a minha actual definição de música, seja inalterável e definitiva.
Pelo contrário, pretendo que esta se mantenha numa espécie de work in
progress, e que a vá alterando, conforme pense, que me foi dado a
conhecer um novo conhecimento, que me leve a pensar que pode trazer algo
de novo ao meu enunciado. Mas estou satisfeito com o trabalho que
desenvolvi até ao momento, e vou de seguida tentar mostrar, de forma
sintetizada, o raciocínio e método de trabalho que usei, para atingir o
estado actual da minha definição de música.
Comecei por pensar qual
era a matéria-prima da música: era o som . Então comecei com uma fórmula
simples, mas quanto a mim bastante completa e eficaz nos seus
propósitos:
M=S
Música igual a som . Esta era a base
da minha definição. Não lhe acrescentei o termo “organizado”, pela razão
de eu entender que embora toda a música seja organizada, esta – a
música – pode em si conter sons não-organizados (uma obra musical que
contenha apenas o som do mar, é uma obra musical organizada, que contém
uma paisagem sonora não-organizada).
Mas se música era igual a som,
tinha de definir som: saber de que era feito. E então numa outra fase,
acrescentei à minha fórmula o seguinte:
M=S (SL ∧∨R)
Em que dizia que o som continha silêncio e ou ruído. Ou seja: já
considerava na altura o silêncio e o ruído como sendo tipos de sons. Mas
o que era o silêncio e o ruído? E que outros tipos de sons existiam? E
como relacionar tudo isto com música? Foi então que comecei a usar uma
espécie de forma de pensamento ontológico. Comecei por dividir o som em
dois grandes grupos: sons organizados e não-organizados; e estes em
outros dois grupos: os sons tónicos e não-tónicos. Depois inclui então o
silêncio e o ruído, sendo que estes dependiam da perspectiva. E como
sons que são – o silêncio e o ruído - também podiam ser organizados e
não-organizados, e tónicos e não-tónicos. Faltavam-me também incluir os
sons eléctricos e electrónicos, e por fim os infra e ultra-sons. Sendo
que todo este som era manipulado pelo ser humano , e que este pertence a
determinada cultura (consoante as diferentes culturas, existem
diferentes conceitos de música). Eis então como ficou a fórmula actual
da minha definição de música:
M=S ⊃ [Sorg (t∧∨~t) ∧∨Sorg
(t∧∨~t) ∧∨ {SL org (t∧∨~t) ∧∨ SL org (t∧∨~t) ∧∨R org (t∧∨~t) ∧∨ R org
(t∧∨~t)} ⇔P ∧∨ Selt org (t∧∨~t) ∧∨ Selt ~org (t∧∨~t) ∧∨ Seltr org
(t∧∨~t) ∧∨ Seltr ~org (t∧∨~t) ∧∨ SI org (i ∧∨ u) (t∧∨~t) ∧∨ SI ~org (i
∧∨u) (t∧∨~t)] ∈ SH ∈ Clt
Música igual a Som, sendo que este
contém: Som organizado (tónico e ou não tónico) e ou Som não-organizado
(tónico e ou não tónico); Silêncio organizado (tónico e ou não tónico) e
ou Silêncio não-organizado (tónico e ou não tónico) e ou Ruído
organizado (tónico e ou não tónico) e ou Ruído não-organizado (tónico e
ou não tónico), sendo que silêncio e ruído dependem da perspectiva; e ou
Som eléctrico organizado (tónico e ou não tónico) e ou Som eléctrico
não-organizado (tónico e ou não tónico) e ou Som electrónico organizado
(tónico e ou não tónico) e ou Som electrónico não-organizado (tónico e
ou não tónico); Som Inaudível (infra e ou ultra sons); e todo este "som"
é manipulado pelo Ser Humano (“pertence” ao ser humano) em determinada
e específica Cultura (“pertence” a certa Cultura).
Uma vez entendido qual a matéria-prima do som e as suas qualidades, a fórmula poderá ser reduzida para:
M=S ∈ SH ∈ Clt
Música é som, manipulado pelo ser humano , pertencente a determinada
cultura. O que faz aqui distinguir a música de outro qualquer som
manipulado pelo ser humano e pertença de uma cultura (por exemplo a
linguagem falada), mas que não seja – ainda – música, é a
intencionalidade em transformar esse som em música. Dessa forma, todos
os sons disponíveis ao ser humano, são potenciais materiais sonoros para
a concepção e realização musicais, se assim houver essa intenção. Não
basta um som ser organizado, tem de haver a intenção de o tornar música.
Som devir música...