O GATO & O DRONE
...um dia eu e a Ilda fomos ao supermercado às
Amoreiras; e eu tinha estado a gravar em casa no meu estúdio na Rua de
São Marçal; cortei o volume do microfone, mas deixei a mesa de mistura
ligada; e fomos; devemos ter demorado aí uma meia-hora, quarenta e cinco
minutos; regressamos de táxi; quando saímos do táxi ouvi um som: um
drone grave; e eu disse "Hey pá: hoje há vizinhos a ouvir música muito
avançada"; e, quando abri a porta de baixo do apartamento (eu vivia num
segundo andar), reparo que afinal a música vem de dentro da minha casa;
ainda a pensar quais dos vizinhos poderia estar a ouvir uma música tão
avançada (moravam lá dois velhos que viriam a morrer pouco tempo depois,
e um casal com um filho que ouviam era Tony Carreira); quando cheguei
ao meu andar, vi a velha com as mãos na cabeça e, percebia-se pela boca,
que estaria a gritar; mas nada se ouvia tal era o volume intenso do som
(drone=som contínuo grave - neste caso); abri rapidamente a porta e
entrei e reparei que o som vinha da minha aparelhagem: um dos gatos
teria pisado no botão do micro e teria-o ligado e provocou um feedback;
desliguei o botão e ficou um silêncio, só cortado por um grito
angustiante da velha vizinha; ela não conseguia dizer nada além de
gritar e ter as mãos na cabeça e eu ia a fechar a porta delicadamente,
quando ela diz algo como: "Já chamei a polícia e os bombeiros"; fechei a
porta, em total silêncio e ouço um carro da polícia lá fora; vou à
janela e vejo sairem dois polícias e uma mulher polícia; tocam à minha
campaínha e eu abro a porta; eles sobem e vão até ao meu andar e eu abro
a porta; eles cumprimentam-me e dizem: "Cremos que terá havido aqui um
problema com música alto"; e eu, com a velha a olhar para mim com ar de
torturada, digo: "Pois senhores polícias, o que se passou foi que eu e a
minha companheira fomos ao supermercado, e um dos meus gatos, pisou o
botão do input, activando o microfone omnidireccional, fazendo causar um
feedback que se transformou num drone de altura grave, e que provocou
temporariamente, som"; eles, olham uns para os outros sem terem
percebido patavina do que eu disse, e a mulher polícia diz-me: "Foi
então um gato?"; e eu respondi "Sim"; de repente, desce as escadas o
velho vizinho de cima e diz-me "O Senhor tem de dizer a verdade! Era um
som horrível que fazia vibrar o prédio todo"; e a mulher chorava e
gritava a confirmar as palavras do marido; e eu disse: "Mas foi o que eu
acabei de dizer: o meu gato pisou inadvertidamente o botão do imput,
activando o microfone omnidireccional, fazendo causar um feedback que se
transformou num drone de altura grave, e que provocou temporariamente,
som"; e o velho dizia "Mas qual drone qual carapuça! Aquilo era um som
infernal!"; e eu repetia a história do gato e do drone; de repente um
dos polícias, olha para os outros com um ar tipo: "Estes velhos são
xonés, e deve ter havido um ruído qualquer e eles passaram-se e isto não
é culpa deste senhor tão simpático e educado", e diz: "Bom, já está
tudo resolvido e portanto vamos embora e tenha mais cuidado com o seu
gato"; eu digo que sim e despeço-me sob o olhar espantado dos velhos que
já nada conseguiam dizer; fecho a porta e vou para a janela da varanda e
ouço os bófias a sairem a rir e a dizerem algo como "Percebeste alguma
coisa do que o gajo dizia?"...
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